O primeiro livro lançado pela ruandesa Scholastique Mukasonga, que conversa sobre sua obra neste sábado, às 15h, no Auditório Barbosa Lessa do Centro CEEE Erico Verissimo, na programação da Feira do Livro, é direto e eloquente como seu título: Baratas, apelido que a etnia majoritária hutu usou por anos contra os minoritários tútsis, ferramenta de desumanização que levou ao genocídio no país africano. Mais do que uma estreia bombástica, Baratas (lançado originalmente em 2004 e editado este ano no Brasil pela Nós) moldou o trabalho da autora por não ser uma ficção, e sim, uma missão que ela própria se atribuiu:
– Baratas é um livro 100% autobiográfico, é algo que eu senti que deveria escrever. Não tinha nenhum projeto, exatamente, mas sabia que precisava colocar ali o que aconteceu em 1994. Depois do genocídio, tive notícias da morte de muita gente de minha família. Então, eu tinha essas mortes mas não tinha seus corpos. E o romance foi uma maneira de recriar como memória os corpos dos mortos. O livro é, de algum modo, um túmulo de papel em memória de todos esses mortos que não pude sepultar – diz ela.
Scholastique narra no livro não só o massacre, visto a alguma distância e com o pudor de não transformar em entretenimento um dos maiores horrores do século 20, mas seus antecedentes. Do papel decisivo que teve na tragédia o colonialismo europeu (a separação entre as etnias tútsi e hutu em cadastros foi uma iniciativa do então governo colonial belga, que privilegiava a minoria tútsi) às iniciativas em escalada tomadas pelo regime hutu a partir dos anos 1960 para restringir direitos dos tútsis. A saber, migração forçada, reunião em guetos, perdas de direitos civis, ofensas desumanizantes até a erupção final de violência que, em 1994, deixou 800 mil mortos em cem dias – 37 deles pertencentes à família de Scholastique.
– Meus livros não lidam com o luto. Essa é uma palavra inapropriada para o caso de Ruanda. O luto é uma coisa natural. O que houve lá foi muito específico e particular, um massacre em que a vida dessas pessoas foi arrancada à força. O que me faz continuar em pé e lutando por meio de minha escrita não é simplesmente fazer um luto, é garantir que essas pessoas sejam lembradas e, a partir dessa memória, seguir em frente. O que eu faço é celebrar e relembrar a vida de todas aquelas pessoas.
Scholastique e seu irmão sobreviveram por terem sido enviados quase duas décadas antes para a França – numa iniciativa de sua mãe. Depois de Baratas, mais calcado na memória, Scholastique lançou outros dois livros sobre o genocídio em que a ficção fala mais alto: A Mulher dos Pés Descalços (2008), sobre sua mãe, e Nossa Senhora do Nilo (2012), novela sobre um grupo de alunas de um liceu de alta classe – inspirado na escola-modelo Notre-Dame de Citeaux, em que ela própria estudou (este está para virar filme dirigido pelo afegão Atiq Rahimi). Em sua fala de hoje, com mediação da jornalista Cláudia Laitano, ela também deve abordar o lento mas efetivo processo de recuperação de Ruanda nos últimos 20 anos. Um processo que passa, como ela mesma lembra, não pela negação, mas pelo reconhecimento.