Depois da polêmica envolvendo a concessão do Nobel de Literatura a Bob Dylan, no ano passado, a Academia Sueca parece ter optado por um nome cujas grandes qualidades podem ser defendidas com argumentos literários mais ortodoxos. O agraciado em 2017 é Kazuo Ishiguro, autor britânico de nome e origem nipônica, que promove cruzamentos sofisticados entre a grande tradição do melodrama e exemplares da literatura de gêneros populares.
O anúncio foi realizado na manhã desta quinta-feira (5) por Sara Danius, secretária-permanente da Academia Sueca, que concede a honraria todos os anos. No comunicado oficial, a Academia justificou que Ishiguro merecia o prêmio porque “em seus romances de grande força emocional, revelou o abismo sob nossa sensação ilusória de conexão com o mundo”. Sara Danius também usou na entrevista coletiva uma definição que parece exótica mas se revela apropriada sobre a obra do autor, qualificado por ela como “uma mistura de Jane Austen e Kafka com uma pitada de Proust”.
O autor foi comunicado da premiação por sua agente literária. Em entrevista à BBC ainda na manhã de ontem, ele brincou dizendo que, a princípio, considerou a notícia mais uma entre as tantas “fake news” dos últimos tempos.
Ishiguro é o primeiro laureado, de uma brilhante geração de escritores britânicos que inclui Ian McEwan, Martin Amis e Salman Rushdie, amigos pessoais do autor. Graduado em filosofia e em escrita criativa, ele nasceu em Nagasaki, no Japão, em 1952 (com 66 anos, é um Nobel relativamente jovem), mas se mudou com a família para a Inglaterra aos cinco anos de idade. Só na vida adulta voltaria a ter contato com sua terra natal, tema de seus dois primeiros romances – o segundo, Um Artista do Mundo Flutuante, catapultou seu nome internacionalmente. Lançado em 1986, apresenta um pintor de cenas tradicionais do Japão refletindo sobre o fim do mundo em que viveu, após a II Guerra.
É um tema que dialoga, de certa forma, com o livro seguinte de Ishiguro, e seu romance mais conhecido, Os Vestígios do Dia, lançado em 1989 e adaptado para o cinema em 1994 com Anthony Hopkins e Emma Thompson nos papéis principais. Na história, um mordomo de formação e caráter extremamente tradicionais reflete sobre o papel de personagens como ele na história britânica, bem como sobre o fim daquele universo com as transformações da sociedade europeia e inglesa após a II Guerra, transformações às quais o personagem, dedicado a seu trabalho e a seu papel na estrutura social, permanece por muito tempo indiferente.
MESCLA DE GÊNEROS É MARCA DE SUA OBRA
Com tudo isso, Os Vestígios do Dia também é uma melancólica história de amor não realizado, mostrando uma das grandes características de Ishiguro como artista, a capacidade de cruzar em seus romances inquietações da literatura mais tradicional com olhares inusitados sobre o contemporâneo, sem abrir mão de um estilo próprio. Depois de passear por um universo tão britânico, O Desconsolado, seu romance seguinte, lançado em 1995, se afasta do realismo mais tradicional para criar uma comédia absurda de tons kafkianos.
Em 2000, Ishiguro deu início a uma fase literária em que sua prosa característica é usada em romances que cruzam a grande literatura com matrizes da ficção popular de gênero. O primeiro exemplar dessa fase é um flerte com o romance policial, Quando Éramos Órfãos. Depois, em 2005, ele abraçou alguns elementos da ficção científica no aclamado Não me Abandone Jamais, outra obra adaptada para as telas em um grande filme, dirigido em 2010 por Mark Romanek e estrelado pelo então trio de jovens revelações inglesas Keira Knightley, Andrew Garfield e Carey Mulligan. Seu livro mais recente, O Gigante Enterrado, é um diálogo tanto com a literatura fantástica contemporânea quanto com os ciclos de contos arturianos. Retrata uma Inglaterra após a guerra contra os saxões, mergulhada no que parece ser uma mística névoa que faz as pessoas esquecerem coisas importantes.
Autor de uma prosa elegante e minuciosa, e portanto de fatura lenta e paciente, Ishiguro não tem uma obra muito extensa. São, ao todo, sete romances publicados entre 1982 e 2015, mais um par de livros de contos. Talvez pelo fato de escrever em inglês, contudo, sua obra teve, desde bem cedo, trânsito no mercado editorial brasileiro, primeiro pela Rocco, que publicou a primeira edição de Vestígios do Dia e outras obras do início da carreira. A partir da virada do século, o autor passou a ser editado por aqui pela Companhia das Letras, que já colocou nas prateleiras quatro de seus romances (incluindo duas reedições de Os Vestígios do Dia) e um livro de contos, Noturnos.
– Achei ousada a escolha da Academia Sueca, pois os últimos dois livros de Ishiguro são romances de gênero, que não costumam ser levados a sério. Esse, por sinal, é seu maior triunfo: assimilar ficção científica e fantasia numa obra reflexiva, meditativa, com grande esmero e concisão na linguagem – comentou o escritor Antônio Xerxenesky, um dos autores brasileiros entusiastas da obra de Ishiguro.