Salman Rushdie e sua obra devem muito a uma descoberta desconcertante: a da sensação de ser "um outro". Em seu livro mais recente lançado no Brasil, o alentado relato memorialístico Joseph Anton, Rushdie narra, além do período em que precisou viver sob proteção devido à fatwa lançada por autoridades islâmicas (falaremos disso na sequência), suas múltiplas raízes familiares. Filho de uma professora e de um advogado erudito de formação islâmica, mas ateu, Salman Rushdie nasceu em Bombaim, em uma família muçulmana de origem caxemire, no exato ano em que a Índia e o Paquistão se tornavam independentes do jugo britânico. Aos 12 anos, foi levado pelo pai para estudar na exclusiva Rugby School inglesa. Tal caldo de experiências só poderia mesmo moldar um escritor, mais do que fascinado, obcecado pela condição do estrangeiro, cada vez mais comum no mundo contemporâneo.
"Depois que ele se despediu do pai, usando o boné de listras azuis e brancas da Bradley House e a capa de sarja, mergulhou em sua vida inglesa. O pecado da estrangeirice foi a primeira coisa que ficou clara para ele. Até aquele dia, ele nunca pensara em si mesmo como o outro de alguém", escreve Rushdie em Joseph Anton, um livro engenhosamente construído como uma autobiografia em que o escritor se apresenta como um personagem observado por um narrador em terceira pessoa que parece olhá-lo de fora, ainda que conheça bem, óbvio, seus pensamentos mais íntimos.
Rushdie se reinventa como personagem de ficção, como seu autoritário pai havia ele próprio se reinventado na vida real - nascido na aristocracia da velha Délhi, Anis Din Khaliqi adotou o sobrenome Rushdie em homenagem ao pensador árabe Ibn Rushd, conhecido no Ocidente como Averróis. De acordo com o que o escritor conta em Joseph Anton, trocas de identidade não eram incomuns na família do escritor: a mãe, Negin Rushdie, era Zhora Butt antes de se casar, e alterou um nome que, para ela, evocava um período turbulento da juventude, em que fora apaixonada por outro homem.
O grande salto na ficção de Rushdie se dá quando ele decide assumir de vez sua condição de "outro" e fazer da alteridade e, principalmente, da estranheza que só um forasteiro pode sentir a matéria-prima de sua ficção. Esse desconforto permanente do estrangeiro vai se aliar nos livros de Rushdie a uma imaginação que não recua diante do inusitado e que não vacila em lidar com personagens que estão eles próprios em busca de uma identidade e reescrevendo seu passado.
Sua estreia literária se deu em 1975, com uma novela na qual decantava vários elementos da ficção científica que havia devorado em sua juventude e os casava com aspectos que se tornariam característicos de sua ficção: o tom fabuloso, a contaminação do fantástico e os temas da cultura e a fé islâmica como ponto de partida. Grimus retoma um poema místico sufista em que 30 aves vencem as dificuldades de uma peregrinação em busca de um deus, apenas para descobrir que, ao cumprir sua jornada, elas próprias se transformaram na divindade que buscavam.
Publicado quando Rushdie tinha 28 anos, Grimus foi uma estreia tardia que não teve grande repercussão. O escritor olhava preocupado para seus colegas de geração que iam construindo uma obra e angariando reconhecimento enquanto ele parecia patinar. Como ele mesmo declarou em uma entrevista à publicação literária norte--americana Paris Review:
"Veja, eu achava que minha carreira de escritor não havia levado a lugar nenhum. Entrementes, muitas pessoas daquela geração talentosa da qual eu fazia parte descobriram seu caminho como escritores numa idade muito mais jovem. Era como se estivessem passando a jato por mim. Martin Amis, Ian McEwan, Julian Barnes, William Boyd, Kazuo Ishiguro, Timothy Mo, Angela Carter, Bruce Chatwin - para citar apenas alguns" (em As entrevistas da Paris Review, volume 2. Companhia das Letras, 2012).
É apenas ao encontrar sua voz literária que Rushdie deslancha, fazendo de sua obra um imenso caldeirão de referências e tradições que, como nas histórias das mil e uma noites ou nos contos de fada europeus ou mesmo nos desenhos animados de fantasia, funde ingredientes díspares em um cozido mágico. O marco dessa virada se dá com Os filhos da meia-noite, romance publicado em 1981, após seis anos de trabalho intenso, e que venceu o Man Booker Prize daquele ano, o principal prêmio literário britânico. O romance viria a ser premiado outras duas vezes, escolhido o "Booker of Bookers" em 1993 e em 2008. No romance, um delírio ficcional superpovoado por uma multidão de personagens, Rushdie encadeia histórias e episódios que funcionam como uma alegoria da Índia nos anos imediatamente anteriores e posteriores à independência do domínio inglês. Todas as crianças nascidas na primeira hora de independência indiana crescem para descobrir que têm algum poder especial - e o mais poderoso deles é justamente o protagonista, Salim Sinai, nascido exatamente à meia-noite da libertação e com a capacidade telepática de se comunicar com todos os outros "filhos da meia-noite". As surpreendentes capacidades daquela geração, contudo, perdem-se gradativamente enquanto a Índia afunda em uma guerra contra o Paquistão e em uma ditadura - uma metáfora bastante explícita dos sonhos perdidos após a independência.
Depois de um caudaloso romance sobre a Índia, Rushdie escreve Vergonha (1983), romance no qual a independência do subcontinente é abordada, desta vez, pelo ângulo do Paquistão. Se em Filhos da meia-noite um enigma de paternidade estava no centro da trama (Salim, filho de um casal de saltimbancos pobres, fora trocado na maternidade por Shiva, o verdadeiro filho do rico casal indiano Sinai), em Vergonha o protagonista Omar Kayyám Shakil também remói a dúvida espinhosa de quem são seus pais, já que três irmãs garantem, cada uma, ter dado à luz o garoto. Foi outro livro bem-recebido pela crítica, sucesso de vendas no Paquistão, em uma fatia do mundo islâmico que pouco depois transformaria Rushdie em um dos autores mais conhecidos do planeta, pelos motivos errados.
Rushdie demoraria cinco anos a voltar às livrarias, desta vez com o romance que mudaria inapelavelmente tanto sua vida quanto o debate sobre liberdade de expressão. Os versos satânicos (que talvez tivesse uma tradução mais precisa em português como "Os versículos satânicos") baseia parte de sua trama em um episódio aceito pelas biografias canônicas de Maomé. Enquanto lutava para ser aceito pela comunidade de Meca como um profeta autêntico, o fundador do islamismo proferiu uma sura (nome dado a cada um dos capítulos do Alcorão) em favor das três deusas cultuadas na cidade. Algum tempo depois, proferiu uma outra sura, com conteúdo contrário, criticando a adoração àqueles ídolos pagãos e justificando que a primeira redação havia sido ditada a ele não pelo Anjo Gabriel, mas por Satã, o adversário, disfarçado de anjo. A primeira sura foi apagada do livro.
Esse episódio foi a inspiração para um dos múltiplos plots que Rushdie incluiu no romance, que começa com a destruição de um avião em um atentado a bomba, do qual são salvos, como por milagre, apenas dois passageiros - ambos, contudo, transformados, um deles em uma figura semelhante a um anjo, outra, em algo mais próximo a um demônio. A essa moldura, que segue as tentativas dos personagens em retomar os cacos de suas vidas, aliam-se sequências oníricas nascidas da mente delirante de Gibreel Farishta, o personagem que desenvolve a personalidade do anjo (e que pode muito bem, o romance também acena com essa possibilidade, ser esquizofrênico).
Dessas sequências de sonhos emergiram os trechos considerados ofensivos por autoridades islâmicas e que culminaram, em 1989, em uma fatwa lançada pelo então governante do Irã, o aiatolá Ruhollah Khomeini. Uma recompensa em dinheiro e um lugar no paraíso foram oferecidos a quem matasse o escritor culpado de desrespeitar uma religião que o condenava sem que muitos tivessem sequer lido o romance de mais de 500 páginas que provocara toda a controvérsia. Uma década escondido sob a vigilância de serviços de segurança, primeiro na Inglaterra e mais tarde nos Estados Unidos, foi o resultado, transformando Rushdie em um símbolo dos perigos do autoritarismo fundamentalista.
À medida que o tempo passou e Rushdie conseguiu permanecer vivo, o perigo da fatwa diminuiu, embora a condenação não tenha sido formalmente retirada e volta e meia seja brandida como uma ameaça. Apesar das mudanças de endereço e da incerteza quanto ao futuro, Rushdie continuou produzindo, e agregou cinco romances, dois livros infantis e uma coletânea de crônicas à sua bibliografia. No conjunto de sua obra, Rushdie se dedica a iluminar as marcas produzidas pelo contato entre o Oriente e o Ocidente e qual o amálgama resultante do entrechoque de suas respectivas culturais estéticas e religiosas.
O escritor usa, para isso, da forma literária europeia por excelência, o romance, equilibrada com elementos extraordinários que remetem à riqueza fabular da obra fundadora de uma certa visão do Oriente, As mil e uma noites. Cabem ainda nos caudalosos livros de Rushdie as tradições literárias hindus e muçulmanas, inspirações mitológicas, quadrinhos, cinema (tanto o da pragmática escola norte-americana quanto o da colorida Bollywood), história da arte, entre outras fontes.
Diferentemente de outros autores que só conseguem dar a liga a semelhante amálgama usando uma voz literária autoconsciente, em perene reflexão sobre o estatuto ficcional do romance e sobre os artifícios da própria literatura, Rushdie costura suas histórias, sempre copiosas e imaginativas, com uma habilidade rara, como quem alinha fio a fio em uma tapeçaria um desenho rebuscado e detalhista. Rushdie não é, definitivamente, um partidário do minimalismo. Seus romances são construídos da enumeração vigorosa de situações e episódios.
Mas além do casamento entre as tradições narrativas do Ocidente e do Oriente - praticamente um lugar-comum da crítica quando se trata de Salman Rushdie -, algo a ser apontado como uma grande realização do escritor é a maneira bem-sucedida como conseguiu incorporar em seus livros a voragem da cultura pop. Rushdie não é o primeiro nem um dos poucos a abordar o pop em sua produção, mas tem entre seus méritos o fato de ser um dos autores que melhor trouxeram para suas páginas elementos que formam o panorama da cultura contemporânea. Rushdie não se furtou em falar apenas de música, mas do rock como tema de uma fábula agridoce em O chão que ela pisa. Ou trazer a dinâmica de morte/ressurreição típica das "vidas" dos videogames para o centro de uma história infantil inspirada nos contos das mil e uma noites, como Luka e o fogo da vida.
O que torna Rushdie peculiar, portanto, não é seu vigoroso furor pós-moderno. É o modo bem-sucedido como consegue, nos limites de uma forma que sempre almejou incorporar o máximo da realidade circundante, agregar até elementos que, nas mãos de outros autores, sempre pareceram indigestos.