Ian McEwan, 68 anos, é um autor cuja obra cumpriu uma trajetória entre a imaginação exuberante e um tanto doentia de seus primeiros livros até a obsessão pelo detalhe em romances de grande requinte técnico, como Reparação e Sábado. Um dos principais escritores contemporâneos de língua inglesa, com um punhado de títulos já adaptados para o cinema e outros dois a caminho (Na praia e A balada de Adam Henry), McEwan esteve em Porto Alegre na última segunda-feira para fazer palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento. Falou especificamente de suas buscas como romancista ao longo de sua carreira, de enfant terrible que estreou nos anos 1970 com poderosos volumes de contos ancorados num humor negro (que para muitos críticos soou grotesco) a autor de romances realistas coloridos com minuciosa pesquisa. O que não evitava alguns erros que seus leitores corrigiam por carta.
– Levo muito a sério quando um leitor me escreve apontando um erro fundamental. É um tipo de compromisso – comentou McEwan, que, ao relembrar esses episódios, arrancou risos da plateia reunida no Araújo Vianna.
Na entrevista a seguir, McEwan fala de seu trabalho, da situação mundial, da grande surpresa política que é a ascensão de Donald Trump, da decepção com as elites que levou à votação pela saída do Reino Unido da União Europeia:
– Há esta raiva que é ao mesmo tempo difícil de definir e entender. Um sentimento de impotência.
Também discorreu sobre seu romance mais recente,Enclausurado, que relê o Hamlet de Shakespeare partindo de uma premissa inusitada: o narrador é um feto nas últimas semanas de gestação que, conhecendo os humores da mãe e ouvindo os sons do mundo externo com o ouvido colado ao ventre, descobre que ela conspira para matar seu marido.
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Depois de muitos romances minuciosamente realistas, o senhor escreve Enclausurado com a premissa fantástica de um feto como narrador. Isso lembra, um pouco, artifícios de seus primeiros contos. O senhor está em uma fase de síntese de sua carreira?
Sim, acho que é o caso. É uma nova direção. Enclausurado abandona as leis da física, as leis da biologia e tem um tipo mais peculiar de narrador. Ele está muito mais conectado ao meu trabalho do início de carreira. Em certo sentido, dei um passo atrás, abandonando as questões de pesquisa, alguns aspectos do real, deste mundo compartilhado com outros, para entrar novamente no reino do fantástico. Quando vamos chegando a um estágio tardio da vida, vamos fazendo um tipo de sumário de nosso trabalho. Há um forte elemento de reflexão, não nos temas, mas no método.
Como o intelectual Edward Said (1935-2003) definiu em O estilo tardio?
Sim. Creio que o estilo tardio de muitos escritores é um tipo de libertação. Uma forma de se libertar de você mesmo. Talvez seja uma espécie de morte (risos).
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DESEJO E REPARAÇÃO
Estrelada por Keira Knightley e James McAvoy, a versão de Joe Wright para Reparação concorreu ao Oscar de melhor filme em 2008
O senhor havia comentado em uma entrevista para a Paris Review publicada em 2002: "É sempre problemático usar crianças na ficção – as restrições de ponto de vista podem se tornar uma camisa de força. Queria ser capaz de retratar a mente de uma criança fazendo uso de todos os complexos recursos de linguagem de um adulto". O novo romance é uma nova aproximação desse problema, dado que o feto narrador é tão eloquente?
Não há ali uma tentativa de imitar uma criança, ou mesmo um bebê, porque um feto é incapaz de falar. Nesse romance, estamos no reino da brincadeira, ele vira as costas para o real. Mas ao mesmo tempo os assuntos que meu narrador aborda são realistas: a situação do mundo, o complô do assassinato de seu pai... Tudo se assenta na primeira frase. Se o leitor é capaz de aceitar aquela primeira sentença, então é possível fazer um pacto e dizer: "Vamos brincar com a ideia de alguém cuja vida ainda nem começou poder especular sobre o mundo a que ele está prestes a se juntar". É um tipo de liberdade. Liberdade para especular.
Como o senhor teve essa ideia?
Como uma ideia ocorre? Você precisa ser receptivo aos momentos de sua própria mente.
E por que seu narrador é uma espécie de Hamlet no útero?
Porque acho que na história da literatura mundial Hamlet irrompe quase que do nada: um homem moderno completamente formado, altamente consciente e específico, um dos personagens mais inteligentes já escritos e com um impressionante poder de autorreflexão. Mesmo no Dom Quixote, mesmos nos personagens de Homero e Virgílio, você não tem um self verdadeiro. Nas peças de outros autores do século 16, contemporâneos de Shakespeare, você tem personagens que representam tipos, virtudes e vícios. Por isso, acho que ele é uma pedra fundadora da literatura mundial. Ele tem muito a nos ensinar sobre como o intelecto faz contato com o mundo. E por isso eu queria um feto como narrador: um típico intelecto puro.
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O ANJO MALVADO
McEwan escreveu o roteiro original deste thriller de 1993 com Elijah Wood e Macaulay Culkin. Espantou-se com o maquiavelismo de Hollywood: “É como se fosse a corte de Cesare Borgia”
O senhor já comentou que pesquisava muito sobre o trabalho de seus personagens, que se interessa pelo que eles falam a respeito dessas atividades. Em entrevistas como esta, o senhor gosta de falar sobre o seu trabalho?
Até certo ponto. Eu gosto também de trabalhar. E não posso falar sobre meu trabalho e trabalhar ao mesmo tempo. É fácil falar de minha pesquisa, porque essa é uma questão externa. É muito mais difícil para escritores, e eu acho muito difícil, quando alguém pergunta, como você fez, de onde veio uma determinada ideia. Eu sempre percebo no interlocutor uma espécie de frustração, a sensação de que você está segurando alguma informação, que não está contando o segredo, mas não há segredo, ou então não há um a ser contado. O segredo é silêncio, solidão, trabalho duro e boa sorte, talvez até mesmo algum talento.
Quando o senhor lançou O jardim de cimento, o Reino Unido vivia uma grande crise econômica, retratada no livro, situado em uma vizinhança que vai sendo gradativamente abandonada pelos moradores. Vê algum ponto de contato entre esses tempos e hoje em dia, com Brexit, Theresa May e crise econômica?
Não é ainda tão grave como nos anos 1970. Até o momento, temos um índice de desemprego de 5%. Mas realmente desconfio que causaremos um grande estrago a nós mesmos ao deixarmos a Europa. Espero estar enganado, quero que o país prospere. Acho que estamos em perigo de perder o nosso caminho. Não creio que percebemos como era bom o arranjo que tínhamos. Há algumas dezenas de milhares de trabalhadores vindos da União Europeia no Reino Unido. Eles pagam impostos, trabalham em nossos campos, em nossos hospitais. Tirá-los do país vai nos causar anos e anos de problemas. Acho que estamos cometendo um grande erro.
Seu narrador feto nunca viu o mundo, mas tem um entendimento parcial dele, feito de pedaços desconexos de informação. É um retrato da confusão de todo mundo na contemporaneidade?
Eu não posso falar sobre o Brasil, mas sei que vocês estão passando por muita agitação aqui neste momento. Mas na Europa, e penso que também nos Estados Unidos, há esta raiva que é ao mesmo tempo difícil de definir e entender. Um sentimento de impotência. Nós vemos esta raiva nos apoiadores de Donald Trump (nos Estados Unidos), nos integrantes dos partidos nacionalistas que estão ficando mais fortes na Europa, na França, na Grã-Bretanha, na Holanda, na Alemanha. É um tipo de raiva imprudente que quer mudar tudo. E é nesse espaço que surgem os demagogos, normalmente na direita. É difícil definir Trump em termos políticos, até porque ele não parece ter nenhum tipo de pensamento político, o que o torna um caso muito interessante, já que muitos à direita não parecem interessados em votar em um idiota tão perigoso. Estamos em tempos turbulentos. Vivemos um clima muito forte contra a União Europeia, não apenas no Reino Unido, mas também na França e na Alemanha. E o que impulsiona isso é um novo tipo de nacionalismo, um tipo de desespero. E se não tentarmos entender isso, corremos o risco de ser soterrados por ele.
É um nacionalismo que agora, no século 21, vem carregado também com as decepções do projeto europeu, que oferecia uma esperança de integração após a violência do século 20?
Há uma forte sensação de que as elites decepcionaram. Um dos principais exemplos é a crise econômica de 2008. Ninguém foi para a cadeia, os bancos continuam ricos, a vida seguiu como sempre e as pessoas comuns sofreram o maior impacto. E esse é apenas um nível. Tivemos escândalos na mídia, em jornais, escândalos de figuras públicas... Há uma sensação real de desconexão das elites. E a União Europeia sempre foi, provavelmente, uma obsessão das elites. Ninguém votou por ela. Votamos para permanecer nela, em 1996, apenas três anos depois do início, mas as circunstâncias eram outras.
Seu amigo Salman Rushdie esteve no Brasil há dois anos e, na época, comentou que tinha um tipo de otimismo voltado mais para seus livros e menos para o mundo. E que, como na formulação de Antonio Gramsci, tinha "o pessimismo do intelecto e o otimismo da vontade". O senhor concorda?
Eu conheço a frase muito bem. É uma formulação muito elegante, e como muitas declarações elegantes, contém algumas verdades e alguns enganos. Acho que o que Salman disse a respeito dos livros é válido para qualquer forma de arte. Fazer qualquer coisa em arte requer um desejo de que algo floresça no mundo. Mas acho que podemos nos tornar vítimas da ideia do "pessimismo do intelecto". Porque o pessimismo intelectual é tão penetrante que você não procura por soluções. Uma das razões pelas quais adoro estar na companhia de cientistas é que, quando eles veem um problema, querem resolver.
Para o senhor, então, há motivos de alento.
Por exemplo, se você perguntar às pessoas sobre a situação da pobreza no mundo, elas provavelmente ficariam surpresas em descobrir que o número de pessoas em pobreza extrema caiu pela metade nos últimos 20 anos. Isso não é o tipo de coisa sobre o que os intelectuais queiram se debruçar, porque não serve. Há menos mortes no nascimento, índices de mortalidade infantil menores, mais pessoas são alfabetizadas, a lista é extensa, e a menos que a incluamos no nosso ponto de vista, ficaremos cozinhando em nosso pessimismo. O que acho interessante é a ferocidade com que os intelectuais combatem a ideia de que pode haver qualquer coisa boa no mundo. É algo muito importante reconhecer os problemas, mas precisamos também pensar nas soluções. E é muito difícil pensar numa solução se você é pessimista.
O senhor escreveu um livro sobre aquecimento global, Solar. Um dos discursos que vêm ascendendo com essa raiva que o senhor identifica é o da negação da ciência. O senhor vê esse movimento como uma ameaça?
Acho que uma tática padrão dos demagogos é dizer: abaixo os especialistas, abaixo a ciência, abaixo o racionalismo. Durante a campanha do referendo no Reino Unido, tivemos políticos dizendo "não precisamos mais de especialistas". Acho que é algo constante na História. Veja a Revolução Cultural na China. Qualquer um com um par de óculos era um intelectual, e poderia sofrer por isso.
O que o senhor achou da concessão do Prêmio Nobel a Bob Dylan?
Gostei muito. Sentei com meu filho e alguns amigos na mesa da cozinha, abrimos três garrafas de vinho, acessamos o Spotify e pusemos para tocar as canções que mais gostamos. Acho que a canção é uma parte vital de nossa cultura. Fico surpreso, achava que aqui no Brasil, de todos os lugares, isso seria celebrado de forma unânime, já que a canção é tão importante no país. Acho que letras de canções têm valor, mas precisam da música. Mas como não há uma categoria para um Nobel da Canção, acho bom que finalmente tenham encontrado um espaço para ela. No Reino Unido também tivemos discussões desse tipo. Talvez se o premiado fosse David Bowie eu achasse que estávamos indo um pouco longe demais em direção ao pop. Mas Dylan é diferente. O interessante é que ele não respondeu à academia, e eles agora estão começando a ficar preocupados. A questão com o Prêmio Nobel é que você não pode evitá-los, assim, acho que eles vão enfiar aqueles milhões garganta dele abaixo (risos).
No início da carreira, alguns críticos o chamavam de Ian McAbro, um apelido que o senhor já declarou que desaprova. Acha que suas incursões pelo humor negro foram mal compreendidas?
Muitas pessoas ficaram chocadas pelas minhas primeiras histórias. E isso foi uma surpresa para mim, porque meus amigos, o grupo de pessoas com quem eu convivia, meus colegas de ofício entenderam esse meu humor. Mas eu me sinto muito afortunado. Comecei a escrever com 21 anos, três ou quatro anos depois publiquei meu primeiro livro, e ele teve muita ressonância, foi um succès de scandale("sucesso de escândalo"). Não vendeu muitos exemplares, mas subitamente eu tinha para mim uma pequena região literária. Eu sempre tive resenhas negativas, mas todo escritor já teve. É uma espécie de risco ocupacional da profissão, a menos que você escreva algo tão banal que ninguém note. Gosto de sentir que podemos constantemente reinterpretar o passado de acordo com o que vem adiante. Na palestra, falo sobre como, quando um escritor morre, depois do funeral, de um obituário, a coisa sólida que fica de fato são 60 centímetros de livros na estante. Ou um metro, um metro e meio de seus livros publicados. E esses livros contam uma meta-história que o autor jamais conseguiria imaginar, mas que pode acompanhar à medida que envelhece. Minha esperança é que os leitores também possam fazer isso, acompanhar os trabalhos antigos levando em conta os mais recentes, e vice-versa. Porque o romance é um gênero muito pessoal. Você realmente consegue ouvir a si mesmo. De todas as formas artísticas, acho que é essa a que mais depende da personalidade do artista.
Quando escreveu Serena, um romance situado mais ou menos nos anos em que o senhor começou sua carreira, o senhor estava tentando de algum modo olhar para esse passado?
Foi um olhar de esguelha por sobre meu ombro. Eu estava também interessado em mesclar o mundo da literatura com o mundo da espionagem. Creio que eles são relacionados. O escritor é uma espécie de espião, e claramente, naquele livro, o espião é uma espécie de escritor.
Escritores e narrativas são preponderantes no seu trabalho. Em alguns dos romances, o leitor descobre ao fim que está lendo uma narrativa escrita por um personagem. O senhor tem fé na narrativa como forma de organizar o mundo?
Sempre acreditei nas narrativas poderosas. Penso que parte da minha missão é unir as lições dos grandes gigantes do modernismo do início do século 20 com as coisas lindas que a narrativa do século 19 nos legou. Como nos dar uma amostra do que é viver hoje, da condição humana, da natureza do mundo em que vivemos, ao mesmo tempo sem jamais negligenciar as conquistas trazidas pelo modernismo. Estar ciente não apenas do que a linguagem descreve, mas da própria linguagem. E ambas as coisas têm de andar juntas, uma a serviço da outra. Que é o motivo pelo qual eu cansei da tradição europeia muito forte da escrita existencial, que poderia se dar em qualquer lugar, em qualquer tempo.