O circo Bonaldo D'Itália tinha acabado de erguer a sua lona no bairro Harmonia, em Canoas, quando a chuvarada histórica caiu sobre o Estado. Diante do cenário, a família, que comanda a atração há quase 30 anos, não pôde fazer muita coisa além de abandonar a estrutura e rezar para que a água não castigasse demais o seu ganha-pão. Não adiantou. A enchente atingiu a altura de 4 metros, inundando o picadeiro, o caminhão, os trailers — que são moradias —, as motos do globo da morte. Enfim, todo o trabalho de gerações.
Dos 15 trabalhadores que tiravam seu sustento do Bonaldo D'Itália, seis decidiram abandonar o projeto, afinal, muitas incertezas pairavam sobre o futuro do circo — e as pessoas precisavam ir atrás de outra fonte de renda urgentemente. Agora, são nove artistas que estão tentando reerguer o que sobrou e tocar adiante o sonho de Primo Augusto Bonaldo, veterano trapezista, que idealizou o circo para seguir com o legado de sua família, que veio da Itália trazendo a arte do picadeiro na mala.
A filha de Primo, Virgínia Vanessa Bonaldo, além de artista, também é coordenadora-geral do circo criado pelo pai. Ela explica que seus filhos já são os herdeiros da arte circense e, com eles, já será a sexta geração da família a viver no picadeiro. Porém, o caminho trilhado por seus antepassados, agora, parece incerto, visto que o negócio é pequeno e o prejuízo é enorme — mais ou menos, R$ 100 mil.
— A gente chegou aqui (em Canoas) uma semana antes da enchente. Só trabalhamos dois dias e choveu. Então, mal trabalhamos. Ainda estamos em processo de limpeza e conserto. Tem todo o material de som e de luz para mandar para o conserto. Não tem previsão de quando o circo volta — conta.
Por enquanto, os nove integrantes remanescentes do circo estão conseguindo se manter por meio de doações, após disponibilizarem um PIX em suas redes sociais. Ainda conforme Virgínia, já foi solicitado o Auxílio Reconstrução, do governo federal, além de se inscrever no programa Sebraetec Supera, do Sebrae/RS, que promete auxiliar microempreendedores individuais e microempresários atingidos pela enchente. No caso específico do circo, houve grande dificuldade de comprovar residência, uma vez que o empreendimento é itinerante. Até o momento, nenhum recurso foi repassado.
— A cultura já é um setor que tem que estar chorando para conseguir alguma coisa. E o circo é pior ainda. Quando tem algum edital cultural, não tem uma parcela específica para circo, que fica com o restinho do restinho. O circo já é malvisto no setor cultural, a gente vem sofrendo. Teve a pandemia, que nos obrigou a ficar quase dois anos parados. Agora, quando a gente estava começando a se reerguer, vem essa enchente. E o que resta é seguir a nossa vida — lamenta a coordenadora do Bonaldo D'Italia.
Acalento
Alessandra Matzenauer, que atua como palhaça no circo, recorda que a cultura é, em momentos de crise, o primeiro setor a ser afetado e um dos últimos a conseguir voltar plenamente. Ela, que também é psicóloga, diz que o cenário é ainda mais complicado para os artistas circenses que, na sua visão, já eram vistos como "ultrapassados" atualmente, e, com certo esquecimento, pouco conseguem ter voz, até mesmo para pedir ajuda.
— Ouvi da Debora Noal, psicóloga que trabalha em locais de desastre, algo que achei bem interessante: aquilo que já era fragilizado antes de um desastre, se potencializa. É como se uma situação dessas que a gente está vivendo aumentasse tudo. É o caso do circo, que é muito pouco reconhecido. Acho que todo mundo gosta do circo, mas ninguém valoriza muito. É como se fosse uma arte que ficou um pouco ultrapassada — diz Alessandra.
Enquanto o cenário não retorna ao que era antes da enchente, os artistas tentam, mesmo sem retorno financeiro, levar seu trabalho aos afetados, dando alegria e recebendo em troca aquilo que é de mais valioso para quem faz cultura: enxergar que a sua arte trouxe, mesmo que momentaneamente, alento para as pessoas. Desta forma, Alessandra e mais um grupo de artistas formaram o projeto Abraço, que percorre abrigos com apresentações:
— É nutritivo, tanto para o artista quanto para o público, se fortalecer da arte neste momento, diante de tanta destruição e tanta impotência que a gente está vendo. Assim como tem profissionais da saúde que vão atender as pessoas, os que sabem remar e vão fazer resgate, acho que o artista se convoca a fazer aquilo que sabe fazer, que é arte. Uma forma de resistência, de atravessar este momento deixando vivo aquilo que é importante em nós. É um acalento.
Ajuda necessária
Presidente da Associação de Circo do Rio Grande do Sul (Circo Sul), Consuelo Vallandro aponta que a classe circense, muitas vezes, por sua rotina itinerante, acaba ficando a par de informações sobre políticas públicas. Ela reforça que é preciso, então, um olhar mais atento por parte do poder público para estes artistas, bem como uma flexibilidade na questão burocrática, principalmente na exigência de comprovante de residência, visto que o circo é itinerante, com muitos de seus trabalhadores vivendo na estrada.
— O circo sofre ainda mais que os demais setores da cultura justamente por existir uma invisibilidade. Eles ficam à margem e ninguém se lembra deles na hora de dizer: "Tu podes receber este valor aqui, tu podes te inscrever aqui” — aponta Consuelo, que reforça que a associação tem cerca de cem membros, mas, neste momento, está auxiliando a todos que necessitam, associados ou não.
Para o caso do circo Bonaldo D'Itália, por exemplo, foi pedido, junto à Prefeitura de Canoas, que os trailers das famílias que atuavam no espaço fossem considerados como moradias e, assim, fosse possível solicitar o Auxílio Reconstrução. A demanda foi atendida e, agora, eles aguardam o envio da verba para que, dessa forma, possam diminuir, mesmo que pouco, as perdas que a empresa de entretenimento sofreu. Para o futuro, a presidente da Circo Sul teme que o cenário fique ainda pior para a classe:
— Infelizmente, estamos vendo uma derrocada econômica muito grande. A cultura é um dos primeiros gastos a ser cortado. O que a gente percebe dos colegas que têm escolas de dança, de circo, de teatro, de artes, que estão tendo baixas de até 70% no número de alunos. Quem tinha uma agenda lotada, da noite para o dia, teve uma série de cancelamentos e, infelizmente, poucas remarcações. E como esse sujeito normalmente trabalha como autônomo, não tem carteira assinada, seguro-desemprego, FGTS e, muito provavelmente, não deve estar nem no Cadastro Único. Então, ele não acessa nenhum desses benefícios. A pessoa fica em desespero.
Para tentar um auxílio emergencial para a classe, a deputada estadual Sofia Cavedon (PT) criou um Projeto de Lei (PL 154), pedindo que os artistas recebam, por, no mínimo, três meses, um apoio em dinheiro para que possam se manter durante o período de calamidade. A iniciativa já foi protocolada junto à Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e, agora, espera ser votada.
— Estamos invisibilizados, mas essa é uma cadeia produtiva importante. Já temos estudos que provaram que a cadeia produtiva da economia criativa gera um PIB maior que a da indústria automobilística. Só que, na hora de ter esse tipo de atenção, infelizmente, a gente não é levado a sério como classe trabalhadora e geradora de renda. Por isso, precisamos deste auxílio emergencial — finaliza Consuelo.
Sebrae/RS
O Sebrae/RS, por meio de nota, pronunciou-se sobre o caso do circo Bonaldo D'Itália, que encontrou dificuldades de buscar os recursos oferecidos pela entidade:
A Consultoria Sebraetec Supera do Sebrae RS, semelhantemente a outras soluções oferecidas pela organização, tem alguns critérios para atendimento. Critérios esses estabelecidos pela natureza do Sebrae, que se respalda na forma de sua atuação. Então, para obter o reembolso dos materiais perdidos por MEIs, micro e pequenas empresas e empresas de pequeno porte é necessário que o CNPJ do solicitante esteja cadastrado em municípios em situação de calamidade pública.
No entanto, no caso dos negócios itinerantes, entendemos haver a especificidade em relação ao local de atuação, como nas atividades circenses, que acontecem não somente no seu local de cadastro, mas se movem por diversos municípios. Nesses casos, o que podemos considerar junto o alvará de atuação naquela localidade. Ou seja, se a ME, MEI ou EPP está atuando em município em calamidade pública pode apresentar o alvará de atividade naquele local com as datas respectivas.
O intuito do Sebrae é ajudar o máximo de negócios possível para a reconstrução do estado do Rio Grande do Sul. Assim, se algum empreendimento ficou sem atendimento ou mesmo não obteve auxílio e ficou com dúvidas sobre isso, o Sebrae oferece todos os seus canais de atendimento para o esclarecimento de dúvidas e para rever caso a caso. Não devemos e não queremos barrar nenhum tipo de negócio atingido de obter ajuda. Pelo contrário, vamos encontrar soluções para os negócios de alguma forma.