Na sala de recepção do Teatro Nilton Filho, que fica no coração do bairro Menino Deus, em Porto Alegre, ainda é possível perceber que as coisas não estão em seus devidos lugares. O estrago que a enchente deixou não é fácil de ser vencido. Por ali, existe um banco estofado de madeira, surrado depois da batalha aquática e perdido no espaço, sem o seu companheiro de anos, um piano Burmeister, que ficou submerso com o 1m50cm de uma água pútrida, que o calou.
Esta, porém, não foi a única perda sofrida no centro cultural, que é independente e se mantém, majoritariamente, devido às aulas de teatro que são ofertadas — são turmas de manhã, tarde e noite, abraçando crianças, adolescentes e adultos. Mas há também apresentações, podendo receber um público de 78 pessoas. No térreo, estavam itens que, tal qual o piano, que foi uma doação, feita há 12 anos, não podem ser comprados novamente. Uma parte da história, aquela que não pôde ser levada para os andares superiores do local, se perdeu.
Estavam lá, por exemplo, uma poltrona com pés de pau-brasil, passando por textos de teatro de décadas — incluindo, alguns da época do teatro de revista —, vinis raros e toca-discos. Na biblioteca, mais de 500 livros sobre artes cênicas foram alagados, perdidos. Os figurinos, que ficam em uma parte inferior do imóvel, coloridos e cheio de vida, agora, os que não estão sujos de marrom, estão mofando. Parte das fotos que foram atingidas pela água, com carinho, foram penduradas em um varal, na frente do espaço, contrastando o passado e o presente.
Foi uma série de prejuízos que Nilton Filho, 71 anos, proprietário do local, sequer consegue calcular. Muito dali, além do financeiro, tinha um valor emocional. Fundado em 1990, o teatro leva o nome de seu idealizador e este garante que o que houve em maio de 2024 se tornou pior episódio da história do local. O momento supera até mesmo o furto das luzes às vésperas da estreia de sua primeira peça, Jorginho, o Machão, com texto de Leilah Assunção, há 34 anos, que o deixou baqueado logo em seus primeiros passos.
— A gente sempre batalhou, sem apoio institucional nenhum. No primeiro momento, eu não queria sair, porque achei que seria possível gerenciar a água. Não acreditava que chegaria a 1m50cm — diz Nilton Filho. — Foi muito chocante, mas eu comecei a brincar que iria transformar o lodo em luz. E o pessoal se entusiasmou com a ideia e começou a surgir gente que eu nem imaginava. A gente não sabe em qual coração bate.
A história é feliz
Conforme a fala de Nilton Filho, o primeiro ato da história até se mostra triste, mas o seu desfecho vai ganhando contornos diferentes, mudando de gênero. A tragédia dá espaço para a esperança. E o poema O Mapa, escrito à mão por Mario Quintana, persevera na parede do térreo, onde a água não conseguiu chegar. Passou incólume à enchente, insinuando, através dos garranchos do escritor, que a arte até pode sofrer algumas perdas, mas sempre resiste.
Assim, mais de um mês depois do aviso por parte da prefeitura para evacuar o prédio — foi em 6 de maio —, hoje, o Teatro Nilton Filho está com as suas portas abertas novamente. E, por lá, tem um importante movimento. Após dias de mutirão de amigos, alunos e ex-alunos do espaço, a previsão é que as aulas recomecem já nesta segunda-feira (10).
— Desde que a água invadiu, fiquei vindo todos os dias alimentar as nove gatas que deixamos nos andares superiores. Não tínhamos como levar elas. Moramos do lado e a água também atingiu ali, perdemos tudo. Foi devastador. Mas eu sempre digo: a queda é uma subida. Toda a queda é uma força para tu subires — diz Hyro Mattos, 54 anos, que divide a administração do teatro com o seu companheiro, Nilton Filho.
A força que Mattos encontrou se dividiu entre os 76 voluntários, sendo eles amigos, alunos e ex-alunos do teatro que se reuniram, criaram um grupo no WhatsApp e começaram a se organizar para ir até o local ajudar na limpeza e, assim, colocar vida novamente no palco do Nilton Filho. Uma destas pessoas é a Carmen Lúcia Lima, 48 anos, que conheceu o espaço através de seu filho, Lucas Lima, que queria fazer teatro, há 11 anos.
O jovem acabou não fazendo as aulas, mas uma amizade surgiu entre Carmen e Nilton. Tanto é que ela foi para a linha de frente para ajudar a reestabelecer o local tão logo viu a postagem sobre a situação do teatro nas redes sociais. E levou junto o marido, Osvaldo Lemos Júnior, 49.
— O Hyro e o Nilton passam para nós uma força. E, por isso, a gente tem que se ajudar. Nestas horas, a gente não pode virar as costas para ninguém. Todo mundo perdeu um pouco nesta enchente, mas a gente tem que se apoiar. O teatro estava em uma situação muito ruim e a gente fica com dó, porque muitas coisas a gente teve que colocar fora. Eram parte da história — salienta Carmen Lúcia.
Rejane Soletti, 60, é aluna há oito anos do Nilton Filho. Grata pelo conteúdo entregue nas aulas e pelo carinho dos administradores do espaço, que a ajudaram com interpretação, desinibição, improvisação e dança, hoje em dia, considera o teatro como a sua segunda casa. Por isso, não pensou duas vezes: colocou a mão no rodo e começou a expulsar o lodo do local.
— Foi bem complicado ver aquela água enorme aqui. Foi tudo bem cansativo, mas a gente tinha que ajudar, apoiar. Se não fosse essa ação de todos nós, a gente não sabe como eles iriam conseguir. Com certeza, na quinta-feira, que é o dia em que eu faço as minhas aulas, estarei aqui — afirma Rejane.
Nilton Filho faz teatro desde 1969 e sempre enxergou que uma das dificuldades da cidade para exercer a sua arte era a falta de espaço. Foi, então, que se esforçou para comprar o casarão que fica na Rua Grão Pará, 179. Na época, em 1988, conseguiu adquirir o imóvel por um preço em conta e, dois anos depois, após reformas capitaneadas pelo próprio, que é arquiteto, inaugurou o seu espaço. O casarão que abriga o centro cultural é de 1937 e sofreu com a enchente de 1941. Ainda assim, segue de pé, firme para continuar sendo espaço de cultura no Menino Deus.
Para ajudar o Teatro Nilton Filho financeiramente, existe um Pix (e-mail): nilton@teatroniltonfilho.com.br.