Por Everton Cardoso*
Assistir à segunda montagem da Companhia de Ópera do Rio Grande do Sul, a Cors, de A Flauta Mágica, é de uma satisfação sem precedentes para quem acompanha a cena local e gosta de espetáculos líricos. Temos visto já há alguns anos, um renascer desse gênero em Porto Alegre. Desde que as orquestras universitárias da região deixaram de ter a presença que tiveram em outros tempos, vínhamos vendo uma redução nas montagens operísticas, mas esse movimento se reverteu com propostas como a da Ospa de levar à cena pelo menos uma ópera por ano e com iniciativas mais pontuais como a da Orquestra do Theatro São Pedro com a estreia de O Engenheiro, de Tim Rescala, há um ano. Ver este grupo recém-formado trazer à cena esta segunda montagem apenas quatro meses depois da ótima apresentação de Cavalleria Rusticana é, pois, um grande motivo para celebrar.
A récita, realizada no Theatro São Pedro na última terça-feira (27), teve casa lotada e plateia aplaudindo entusiasmada. Poderia haver mais indícios de que o grupo de cantores e cantoras líricas que se organiza ao redor de uma iniciativa como esta soube entender os anseios e desejos do público porto-alegrense, ávido por noites líricas? Apresentada em uma versão mais curta, sem os recitativos, a montagem deu conta de nos transportar para as aventuras e desventuras de personagens criados no século 18 pelo libretista Emanuel Schikaneder para esta composição de Wolfgang Amadeus Mozart. Trazendo como pano de fundo o embate entre o conhecimento e a ignorância, a obra apresenta dois romances que vão norteando uma trama que pretende contrapor os iniciados no mundo da racionalidade e aqueles que ainda não o descobriram.
A opção do diretor cênico e artístico Carlos Rodriguez, barítono já conhecido, foi por combinar as cenas do elenco com o momento da composição por Mozart, interpretado por Eiko Senda, que executava a música ao piano, e da escrita por Schikaneder, que ganhou vida pelo maestro e compositor Ronel Alberti da Rosa, que contava a história. Alternando momentos mais narrativos com as exibições de canto, fica uma pergunta com relação ao resultado da estrutura: será mesmo preciso que a narração antecipe elementos que, depois, serão apresentados em forma de canto ou encenados? É claro que se pode pensar que um formato assim pode ser bastante didático e comunicar-se mais facilmente com públicos menos habituados à linguagem operística. No entanto, parece relevante deixar certa abertura poética, ou seja, deixar que os trechos musicados sejam os protagonistas, que nos causem as sensações. Afinal, ópera justamente é o drama musicado: a confluência entre palavras, melodia, canto, instrumentação e interpretação cênica é que tem o potencial de nos tocar de modo mais profundo.
O elenco teve desempenho satisfatório. Ao ter escolhido diversos cantores menos conhecidos do público, o diretor explora e referenda justamente o potencial que têm projetos como a Cors: a criação, movimentação e estabelecimento de uma cultura operística regular na cidade, com mais trabalho para os profissionais e mais espetáculos para apreciadores do gênero. O destaque da noite, sem dúvida, fica com Papageno na interpretação do baixo Guilherme Roman. O cômico e intrépido caçador de pássaros divertiu a todos que estávamos lá, sobretudo em duas cenas. A primeira quando, sentado, faz um dueto com Pamina — trazida à cena pela soprano Débora Faustino. Papageno come biscoitos e, ao cantar, exagera nos trejeitos e cospe, arrancando gargalhadas do público. A segunda, ao final da ópera, quando finalmente encontra sua Papagena — a soprano Elisa Lopes — e, com ela, forma uma família com suas quatro Papageninhas. Momentos como esses são para ficar memória e nos fazerem querer ver mais.
Depois desse espetáculo, uma certeza nos resta: a Cors é um movimento de beleza e ânimo únicos e tem potencial de ter uma dimensão ainda maior. A Ospa, nesse sentido, já tem nos dado demonstrações ao reunir instituições e artistas de diversos perfis ao redor de si, como foi o caso de Ospa na Sbornia, concerto de 2018 no qual a orquestra juntou vários artistas e mesmo uma escola de samba para trazer o universo de Tangos e Tragédias.
Depois de duas montagens da Cors acompanhadas pelo piano, surge uma pergunta da qual não podemos escapar, em se tratando de óperas: quando veremos uma montagem da Companhia com orquestra? É claro que se sabe das questões todas de produção e do quanto estes são os primeiros passos desse conjunto recém-formado. Mas seria demais desejar uma rica, completa e variada cena lírica para Porto Alegre? Fica a certeza de que não, já que o que temos visto nos palcos da cidade em montagens de diferentes instituições nos leva a sonhar.
*Everton Cardoso é jornalista e crítico