Por Everton Cardoso *
No momento em que, passadas as 11 da noite do último sábado (14), os maestros Kraunus e Nabiha, o Barão de Satolep, o elenco musical da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre e a Escola de Samba Imperatriz Dona Leopoldina subiram a rampa que os levava de volta ao Auditório Araújo Vianna, ficou a sensação de que não era possível estar em outro lugar naquele momento.
Encerrava-se, assim, entre sambas-enredo e trechos de canções e música de concerto cantarolados por público e artistas, o empolgante e encantador espetáculo A Ospa vai à Sbørnia. Como já era tradicional no Tangos & Tragédias – que entre 1984 e 2014 arrastou o público do Theatro São Pedro à Praça Marechal Deodoro ao final de cada espetáculo –, o cortejo puxado por Hique Gomez e Simone Rasslan – intérpretes dos maestros sbørnianos – saíra cantando Necessário, um tema do filme Mogli: O Menino Lobo. A cena, porém, é apenas uma amostra do que se viu nas quase três horas de concerto.
No palco, foi perceptível já desde o princípio o quanto o espírito da noite era diferente: os músicos da orquestra e do coro sinfônico traziam, para além dos tradicionais trajes de gala, algum adereço que remetia à estética meio retrô, meio cabaré dos sbørnianos.
A locução anunciara o maestro Evandro Matté como "conde". Mas foi quando soou A Trágica Paixão de Marcelo por Roberta que voltaram à memória aquelas noites de janeiro de um São Pedro lotado de gente que sabia as letras das músicas. Ao final da canção, Hique disparou sobre a saga do casal retratada na letra: "Esta história é ficção, e todos os personagens são falsos, inclusive a Câmara dos Deputados, o Senado e o STF". O público aplaudiu. "O amor vencerá a hecatombe", sentenciara ele um pouco antes.
Para anunciar a participação da Escola de Samba Imperatriz Dona Leopoldina, Hique Gomez discursou sobre as tradições populares como forma de expressão da natureza nos seres humanos. "Por que não tem Carnaval?", perguntou, fazendo referência ao cancelamento dos desfiles competitivos deste ano. E ensinou, ao pensar sobre a agremiação sediada no bairro Rubem Berta: "Eles estão na periferia e enxergam o que estamos fazendo. Nós temos que enxergar a periferia". Em tempo: a Imperatriz apresentou no concerto os sambas com os quais homenageou o Tangos & Tragédias, em 1999, e a Ospa, em 2001 ("Sambar com a orquestra eu sempre quis", diz este último). A arte é conhecimento sobre o mundo; a confluência das diversas expressões, sabedoria.
Participações marcantes
Com maquiagem pálida, corcunda e com um machado na mão, Vitor Ramil entrou em cena como o Barão de Satolep. A interpretação de Joquim, canção de sua autoria sobre o "louco do chapéu azul" inspirado no inventor pelotense Joaquim Fonseca, foi emocionante. O arranjo do trompista da Ospa Alexandre Ostrovski Jr. conseguiu uma façanha: deixou a "nau da loucura no mar das ideias" ainda mais viva. Ao final, houve manifestações políticas na plateia às quais Hique reagiu: "A história do Joquim serve para muitas leituras contemporâneas".
Outras participações também se fizeram marcantes. Nei Lisboa cantou Berlim, Bom Fim, que ele compôs para contar anedotas da cidade, como a da "fauna ensandecida do Ocidente" – referindo-se à casa noturna existente desde os anos 1980. A bailarina Gabriella Castro roubou a cena em Mundinho – quando Hique cantou vestindo uma roupa em forma globo terrestre cheio de remendos e ela sapateou. O Coro Jovem da Escola de Música da Ospa foi regido por Hique para cantar O Drama de Angélica, de Alvarenga e Ranchinho. Para aquele grupo de cerca de 50 crianças, sem dúvida, essa foi uma experiência sem par.
Esse foi, portanto, um grande acerto da Ospa: os arranjos estavam precisos, a execução musical foi competente e a montagem como um todo funcionou muito bem. A proposta, inclusive, foi exemplar em se tratando de uma aproximação do conjunto sinfônico com um repertório de apelo a um público maior. Que o digam as pouco mais de 3 mil pessoas que lá dançaram o Copérnico. A orquestra passa a integrar suas memórias afetivas – se é que ainda não o fazia.
Se ficou alguma saudade? Várias, claro. A presença de Nico Nicolaiewski (1957 – 2014) como o Maestro Plestkaya foi a principal delas. Além disso, a versão deles para a canção Meu Erro, dos Paralamas do Sucesso – ainda que compensada por uma doce e competente interpretação de Simone Rasslan para Oração, da Banda Mais Bonita da Cidade.
Resta, então, a vontade enorme de estar novamente diante dessa confluência do que de melhor a cultura do Rio Grande do Sul produz. "A Ospa, caros senhores, é o coração da cidade", disse Hique Gomez ao final. Nada mais verdadeiro, provou o espetáculo.
* Jornalista e crítico