Durante a montagem de Mulheres Feias, de 1953, espetáculo que a lançaria de fato no teatro, Fernanda Montenegro foi escalada para viver a filha da personagem principal, descrita como feia e apagada. A atriz, que acreditava não se enquadrar no padrão de beleza das mulheres da época, como Tônia Carrero e Norma Bengell, insistiu timidamente que queria interpretar outra personagem, uma sedutora prima vinda de Londres. Foi o desejo de "experimentar uma não eu", como conta em seu recém-lançado livro de memórias, Prólogo, Ato, Epílogo (Companhia das Letras). Acabou ganhando o papel, arrematando sucesso de crítica e público, e concluiu que tinha futuro.
Revendo sua brilhante carreira como uma das maiores estrelas do teatro, da televisão e do cinema no Brasil, Fernanda define os anos vividos como sendo de coragem e medo. "Vejo, hoje, que troquei de pele pela vida afora durante setenta anos. Nunca tive realmente e definitivamente o meu próprio rosto, o meu cabelo, e nem a minha postura", anota no livro. É a síntese do ofício descrita por quem tem ensinado, pelo exemplo, a função do ator na arte e na sociedade. Motivo de sobra para comemorar com Fernanda Montenegro os 90 anos de idade que ela completa nesta quarta-feira (16).
O tempo passado e a obra constituída têm estimulado a atriz a registrar sua vivência em livros. No ano passado, lançou Fernanda Montenegro – Itinerário Fotobiográfico (Edições Sesc São Paulo), volume de capa dura em grande formato com fotos, documentos e textos. O novo, Prólogo, Ato, Epílogo, foi escrito por ela a partir de entrevistas concedidas à jornalista Marta Góes. Em primeira pessoa, a atriz narra os bastidores de sua carreira, do rádio ao cinema, passando pela televisão e pelo teatro. As lembranças do ofício andam juntas com detalhes biográficos: ela traça sua origem desde os antepassados italianos e portugueses, reconstitui a relação duradoura de amor e trabalho com Fernando Torres e fala sobre os filhos, Claudio Torres e Fernanda Torres.
As memórias do palco, presentes em generosa porção, permitem entender os caminhos da arte dramática no país. Nos anos 1950, quando foi dirigida por grandes encenadores, como Gianni Ratto, Fernanda testemunhou sessões lotadas de terça a domingo, tanto em espetáculos tradicionais quanto nos contestadores. "Felizmente, ao contrário do que acontece hoje, o teatro era respeitado como um valor básico dentro da nossa cultura", lamenta.
Reconhecimento
Ratto tinha algo de missionário, segundo Fernanda, "um condutor apaixonado e apaixonante, mas cruel em sua exigência". Com ele, o Teatro dos Sete – que tinha Fernando Torres, Sergio Britto e Ítalo Rossi – montou, entre outras, O Beijo no Asfalto, estreia da peça de Nelson Rodrigues, em 1961. Nelson a escreveu por insistência de Fernanda (durante oito meses, na contabilidade do dramaturgo). O trabalho estreou em uma época de polarização ideológica, lembra a atriz, mas os protestos eram sempre de cunho moral: enquanto parte do público gritava "Tarado!" e "Pornógrafo!", outra parcela mandava calar a boca.
Uma das passagens de Prólogo, Ato, Epílogo lembra a repercussão do filme Central do Brasil (1998), que valeu indicações ao Oscar de melhor atriz para ela e de produção estrangeira para o filme. Na noite de premiação, Ian McKellen abordou Fernanda: "Você sabe quem eu sou?". Ela respondeu que sabia, claro, e então ele emendou: "Espero que você ganhe". Apesar da torcida, nem Fernanda e nem McKellen (que concorria a melhor ator por Deuses e Monstros) levaram a estatueta. Mas o longa de Walter Salles consagrou a atriz internacionalmente e rendeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim. Algo que os brasileiros já sabiam há tempo: Fernanda Montenegro é um patrimônio cultural.
PRÓLOGO, ATO, EPÍLOGO
De Fernanda Montenegro, com Marta Góes
Memórias, Companhia das Letras, 392 páginas, R$ 49,90 (livro) e R$ 29,90 (ebook).