Por Jessé Oliveira
Pensar a dramaturgia é pensar em como contar uma história, elaborar narrativas e pontos de vista a serem elevados ou contestados. Estar presente nessas narrativas é uma forma de elaborar pertencimentos e representatividades. Essa é a uma das questões fundantes das discussões sobre a presença negra no teatro brasileiro. Uma importante obra do célebre Abdias Nascimento (1914-2011) é Drama para Negros e Prólogo para Brancos (1961), uma coletânea de textos com protagonismo negro, num tempo de invisibilidade e estereótipos.
Correntemente se fala de uma ausência de personagens negras em peças brasileiras, apesar do alto percentual de pessoas negras na população brasileira, relegadas a uma invisibilidade cultural e epistêmica. E como pensar essa questão em um estado onde nós, negros, somos minoria?
Há que se fazer um exercício de memória para buscar a contribuição negra para o teatro gaúcho, especialmente para a dramaturgia. Impossível fazer esse esforço mnemônico sem trazer ao centro Artur Rocha (1859-1888), que em sua curta vida produziu e encenou obras de teatro que foram montadas em sua época, inclusive no suntuoso Theatro São Pedro. Sua obra é um importante instrumento de análise sociológica de uma Porto Alegre do século 19. Seus textos ainda aguardam publicação e novas encenações para firmá-lo no panteão dos autores gaúchos.
Para o programa de Hamlet Sincrético (2005), pedi ao Oliveira Silveira que fizesse um breviário do teatro negro gaúcho. Nele, Oliveira apontou alguns dados relevantes, como a estada de Solano Trindade (1908-1974) no Rio Grande do Sul entre os anos de 1939 e 1941. A memória desse período foi comprometida em uma enchente. Ainda cita os grupos Teatro Saci, Grupo de Teatro Marciliense, Teatro Floresta Aurora, Grupo Cultural Razão Negra e Teatro Negro Axé. Há que se fazer uma pesquisa mais apurada para levantar quantas obras de dramaturgos negros foram encenadas por esses coletivos.
Durante os anos 1970 e 80, tivemos uma nova vaga de experiências teatrais negras, já com uma preocupação em discursos de negritude, ainda que tenham sido iniciativas esparsas e muitas vezes utilizando material poético para a construção de seus trabalhos. Podemos destacar alguns autores negros que escreviam para periódicos, escreviam poesia, mas também se aventuraram em criar textos, como Paulo de Moraes, o Baiano, Oliveira Silveira e Waldemar "Pernambuco" Moura.
Talvez o autor negro que tenha produzido a dramaturgia mais consequente, trazendo temas negros por meio de cosmogonias, foi Hermes Mancilha, com textos publicados e uma quantidade de obras esperando edições. Apesar dessa potencialidade, seus textos em geral foram encenados com elencos de atores majoritariamente brancos.
O Grupo Caixa-Preta, no início do milênio, consegue manter uma produção teatral constante, ocupando os principais espaços teatrais da cidade. Montou peças do autor afro-brasileiro Cuti, de São Paulo, e do senegalês Birago Diop (1906-1989), mas seu trabalho foi igualmente intenso nas apropriações e recriações dos chamados clássicos da dramaturgia universal, com uma trilogia formada por Hamlet Sincrético (2005), Antígona Br (2008) e Ori Oresteia (2015). Cito esses trabalhos para ressaltar que parte de nossa dramaturgia passa por reescritas dramáticas e ressignificações que são recorrentes e muitas vezes necessárias.
Depois desta primeira década do milênio, houve um incremento no teatro negro gaúcho, com uma multiplicidade de abordagens e, finalmente, o aparecimento de uma cena negra ampla formada por inúmeros grupos e propostas narrativas plurais. Por exemplo, o Grupo Montigente, de Gil Collares, monta Artur Rocha e faz uma original adaptação de Os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht (1898-1956), transformando sua estrutura dramática e mesmo a linguagem a partir da cultura afro-brasileira.
Uma vertente importante surge com criações e dramaturgias coletivas, inauguradas pelo Grupo Pretagô. Este traz como matéria criativa as vivências e arqueologias pessoais, especialmente em Qual a Diferença Entre o Charme e o Funk? (2014), mas ainda em AfroMe (2015), que resultam em dramaturgias coletivas consistentes e provocativas. Ambos dirigidos por Thiago Pirajira.
Podemos pensar em dramaturgia não somente no sentido estrito da literatura, mas como processo de construção de espetacularidade. Neste se inscreve o trabalho do Coletivo Bichas Pretas, que faz seu trabalho inaugural, concebido e coreografado por Marco Chagas, discutindo a objetificação das corporeidades negras.
Surge, nos últimos anos, uma linhagem de autores teatrais de ofício. Destaco aqui Viviane Juguero, que há muito trabalha a questão de diversidade em suas peças infantis e em colaborações com o Caixa-Preta e que recentemente teve publicado seu texto O Cavalo de Santo, na antologia Dramaturgia Negra, editada pela Funarte, peça que foi montada por mim no Theater Krefeld und Mönchengladbach, na Alemanha, em 2016; Pedro Bertoldi, um jovem autor e ator que dá significativos passos para uma linha de dramaturgia autoral, com peças como A Última Negra e outras com temáticas diversas já encenadas por importantes grupos da cidade; e Diones Camargo, um autor branco que em A Mulher Arrastada, uma peça-manifesto, denuncia a violência apontada às pessoas negras em vulnerabilidade social.
* Diretor, professor, gestor cultural e fundador do Grupo Caixa-Preta
DRAMATURGIA NEGRA
Organização de Eugênio Lima e Julio Ludemir
Teatro, Funarte, 480 páginas, R$ 30.
Com peças de Aldri Anunciação, Cristiane Sobral, Dione Carlos, Grace Passô, Jê Oliveira, Jhonny Salaberg, Jô Bilac, José Fernando Peixoto de Azevedo, Leda Maria Martins, Licínio Januário, Luh Maza, Maria Shu, Rodrigo França, Rudinei Borges dos Santos, Sol Miranda e Viviane Juguero.