Pouco antes de um ensaio de O Quatrilho, em Porto Alegre, o escritor José Clemente Pozenato revela o que considera o "pequeno segredo" para adaptar um romance em formato de libreto de ópera:
– Aquilo que no romance é discurso interior do personagem, ou seja, o que ele fala para si mesmo, na ópera é transformado em ária e é cantado para o público.
Foi o recurso de que o próprio Pozenato lançou mão para escrever o libreto da produção gaúcha que tem estreia nacional neste sábado (28) e domingo (29), no Theatro São Pedro. Mas o luxo de ter o próprio autor assinando o roteiro não é o único aspecto que diferencia O Quatrilho de outras óperas.
É uma oportunidade para assistir à obra de um compositor contemporâneo, Vagner Cunha, ambientada na Serra gaúcha, região de colonização italiana. As árias serão cantadas em italiano, e os recitativos, falados em português.
Não é a primeira vez, nem a segunda, que o romance lançado originalmente em 1985 é adaptado para outra linguagem artística. Em 1990, o grupo Miseri Coloni, de Caxias do Sul, levou a história ao teatro no espetáculo O Quatrílio. A repercussão internacional veio cinco anos depois, com a versão cinematográfica de Fábio Barreto indicada ao Oscar de filme estrangeiro (leia mais abaixo).
Ópera sem melodrama
Concentrada no núcleo de personagens que se envolvem em uma troca de casais – Teresa (a soprano Carla Maffioletti), Ângelo (o tenor Flávio Leite), Pierina (a soprano Maíra Lautert) e Mássimo (o barítono Daniel Germano) –, a produção promete dramaticidade, mas sem excesso. O teatro não é mero acessório da música, e sim parte indissociável da montagem, como destaca o diretor cênico Luís Artur Nunes:
– A ópera trata de questões amorosas candentes, mas não há aquela impostação melodramática da ópera mais heroica. Os personagens são muito reais, inclusive contemporâneos, apesar de a história se passar em 1910.
Por tudo isso, O Quatrilho promete surpreender os espectadores que tiverem uma visão estereotipada sobre o que é uma ópera, como observa Carla Maffioletti:
– A ópera é uma arte viva, completa. É um mundo que se abre, uma emoção sentida à flor da pele que é muito real. Acredito que os espectadores terão um choque de intensidade no espetáculo.
Seguindo a tradição de grandes óperas do passado, a partitura foi composta especialmente para os cantores do elenco e para os 12 músicos da Camerata OntoArte, que serão regidos por Antonio Borges-Cunha, pai do compositor.
O tenor Flávio Leite destaca a honra de estrear uma obra:
– Quando encenamos óperas de Mozart ou Donizetti, é impossível não se inspirar nos grandes intérpretes. Mas nesse caso nós é que nos tornaremos a referência, não necessariamente boa ou ruim.
Completam a lista de personagens Tia Gema (a contralto Luciane Bottona), Cósimo (o barítono Ricardo Barpp) e Rocco (o baixo Pedro Spohr). Orçada em R$ 1,2 milhão, dos quais R$ 650 mil vieram de incentivo da Calçados Beira-Rio por meio da Lei Rouanet, O Quatrilho seguirá em turnê pelo Rio Grande do Sul.
Vagner Cunha: "As pessoas vão sair cantando"
Autor da partitura de O Quatrilho, Vagner Cunha é um dos mais atuantes compositores e arranjadores em atividade no Estado, já tendo assinado obras em diferentes formas, da canção ao balé. Leia, a seguir, trechos da entrevista que ele concedeu a Zero Hora.
Como descreves esta ópera do ponto de vista musical?
A preocupação foi que emocionalmente ela pudesse ser compreendida. E aí se encontra a música para isso. Às vezes é atonal, às vezes é tonal. Mas é uma linguagem que comunica muito facilmente. Há algumas árias que tenho certeza que as pessoas vão sair cantando.
Como se chegou a esse formato de orquestra mais enxuto, com 12 músicos?
A não ser que se tenha uma companhia de ópera, é impossível viajar com mais de 12 ou 15 músicos. Um dos critérios da escolha da instrumentação foi dinheiro. Não é só cachê, é logística. Na Europa, mesmo Peter Brook (diretor inglês de teatro e ópera) está fazendo montagens de óperas clássicas com seis ou sete músicos.
Dentro do contexto brasileiro de produção de óperas, o longo processo de ensaio de O Quatrilho é raro?
As óperas no Brasil são feitas à la louca, os caras fazem milagre. Tivemos o luxo de ter 8 horas de ensaio por dia durante 30 dias. Tivemos uma semana com música, duas semanas só de cena e depois mais uma semana de ensaios gerais. Tudo isso é custo, mas é o investimento que tivemos que fazer. Teria como fazer tudo em uma semana, mas queremos fazer uma produção top.
Concordas que o público gaúcho é carente de ópera?
Fala-se muito que o público não vai, mas não é verdade. Quando tem oferta, ele vai. Com ópera, é incrível. Tem também o público que gosta de musical. Como se chama hoje em dia: ópera ou musical? A ópera pode ser vista como musical. São os mesmos elementos: cena, dramaturgia e música.
E com uma história próxima do público.
Così Fan Tutte, de Mozart, é isso: uma troca de casais. Mas tem uma diferença. Na ópera, sempre tem um casal ou grupo que tem sucesso e, para isso, uma grande tragédia tem que acontecer. Tem morte, tem o descornado. Já O Quatrilho é uma história em que as pessoas se entendem, e são as mulheres que conduzem à solução. O protagonismo feminino é total.
O livro: um panorama da imigração
Muito mais rico do que a adaptação linear em filme, o romance de 1985 escrito por José Clemente Pozenato é uma vigorosa peça de câmara que usa uma história aparentemente simples de amor e infidelidade para fazer uma radiografia ampla das comunidades de imigração italiana do RS no início do século 20.
A proximidade entre dois jovens casais associados em uma propriedade provoca a ciranda de amores em que Teresa foge com Mássimo, marido de Pierina, que, com o tempo, se consola numa relação com Angelo, casado com a primeira. Em volta desse quarteto, Pozenato aborda o preço da transgressão em comunidades conservadoras e religiosas, as transformações da urbanização, o embate entre modernidade e tradição e o peso da religião.
O filme: signo de uma retomada
Filmado em diferentes cidades da serra gaúcha em 1995, O Quatrilho simbolizou uma retomada do cinema nacional. No elenco, estavam Glória Pires (Pierina), Alexandre Paternost (Ângelo), Patricia Pillar (Teresa) e Bruno Campos (Mássimo). O filme do diretor Fábio Barreto surgiu "em um momento em que o cinema brasileiro mostra-se pronto para recuperar o público perdido com o desmonte da indústria cultural promovido pelo governo Fernando Collor a partir de 1990", escreveu o crítico Tuio Becker em Zero Hora na época. Indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1996, O Quatrilho obteve uma torcida similar à de um campeonato de futebol no Brasil, mas o vencedor foi o holandês A Excêntrica Família de Antonia.
Turnê gaúcha
PORTO ALEGRE
Dias 28 de julho, às 21h, e 29 de julho, às 18h e às 21h, no Theatro São Pedro. Ingressos de R$ 60 a R$ 130
RECANTO MAESTRO
Dia 3 de agosto, às 20h, no Auditório da Antonio Meneghetti Faculdade, em Restinga Seca. Ingressos a R$ 90
BAGÉ
Dia 9 de agosto, às 20h30min, no Museu Dom Diogo de Souza. Ingressos a R$ 90
PELOTAS
Dia 10 de agosto, às 21h, no Theatro Guarany. Ingressos a R$ 90
PASSO FUNDO
Dia 12 de agosto, às 20h30, no Teatro do Colégio Notre Dame. Ingressos a R$ 90
BENTO GONÇALVES
Dia 15 de agosto, às 20h30min, no Anfiteatro Ivo Antonio da Rold da Casa das Artes.Ingressos a R$ 90
CAXIAS DO SUL
Dia 18 de agosto, às 21h, no Teatro Murialdo. Ingressos a R$ 90
NOVO HAMBURGO
Dia 19 de agosto, às 19h, no Teatro Feevale. Ingressos de R$ 80 a R$ 150
Os ingressos estão à venda pelos sites teatrosaopedro.com.br (sessões em Porto Alegre), uhuu.com (Novo Hamburgo) e blueticket.com.br (demais cidades).