Com a chegada de Mirante, de Rodrigo John, em cartaz a partir desta quinta-feira (31/8), o Rio Grande do Sul soma cinco longas-metragens estreando nos cinemas desde o início de agosto. Um recorde improvável, difícil de ser batido e que foi alcançado graças a uma série de circunstâncias que incluem os atrasos de agenda das distribuidoras em razão da pandemia e os editais e legislações emergenciais que estão ajudando a destravar o contingente de produção reprimido pelas dificuldades sanitárias e também políticas dos últimos quatro anos.
Mirante é um ensaio sem diálogos rodado não simplesmente no apartamento do diretor, localizado no Centro Histórico de Porto Alegre, mas do apartamento para a cidade, a partir de sua vista privilegiada que abrange o Guaíba, os viadutos e avenidas que levam aos bairros e as ruas centrais nas quais registram-se passeatas históricas, fatos chocantes (assaltos, violência policial, cenas de miséria) e banalidades cotidianas.
O admirável trabalho de construção visual e montagem de John redimensiona tudo isso, alterando o status dos acontecimentos originais a partir da manipulação das imagens. Dois homens gesticulando sobre um telhado não são dois homens mantendo o que se sugere, aparentemente, ser um diálogo sério, mas, isso sim, dois bailarinos a se deixar levar, com graça, pela música do maestro Vagner Cunha, igualmente notável em sua capacidade de valorizar cada registro imagético.
O registro é um espelho, mas devidamente programado pelo cineasta para provocar a pensar sobre aquilo que está mostrando. Nesse sentido, o tempo fez bem a Mirante. Suas primeiras imagens foram capturadas no distante ano de 2007, o que significa dizer que, daquelas janelas do 17º andar, John e a produtora e diretora assistente Adriana Hiller Marques, com quem ele divide o espaço e o olhar, testemunharam uma enormidade de situações, entre as quais as jornadas de inverno de 2013, os pedidos de impeachment de Dilma Rousseff, as movimentações do “Fora Temer”, apoio e críticas ao trabalho da Brigada Militar. Rever tudo isso, hoje, traz embaraço, orgulho, vergonha ou indiferença? A resposta varia conforme o espectador, é claro, mas a pergunta é o que importa – é ela que, nesse caso, define que se está diante do bom cinema.
Em outro filme gaúcho em cartaz, O Acidente, de Bruno Carboni, intrigada com as motivações do personagem adolescente que grava com o celular cenas corriqueiras do dia a dia, a protagonista pergunta:
– Por que tu me filmou?
A resposta do menino é admirável (esse adjetivo está sendo repetido intencionalmente com o propósito de sublinhar a qualidade dessa produção local recente):
– Filmei para ver se aquilo estava acontecendo mesmo. O olho engana. Nem tudo o que a gente vê é real. Tem coisas que não conseguimos ver e que estão por aí. Às vezes eu gravo algo, vou ver depois de um tempo e está totalmente diferente do que era.
Rodrigo John segue a mesma lógica do adolescente de O Acidente – e, por óbvio, de Carboni e da corroteirista Marcela Bordin, que criaram esse diálogo.
Mirante se filia à corrente dos filmes que se propõem a construir uma sinfonia da cidade, tal qual o clássico Berlim, Sinfonia da Metrópole (1927) e o contemporâneo Suíte Havana (2005), mas a forma madura com que esse belo filme gaúcho pensa a imagem, reciclando-a, reinventando-a e desafiando-a a dizer mais do que ela inicialmente parecia estar dizendo, ecoa pensamentos da derradeira fase ensaística de Godard, de Adeus à Linguagem (2014) e Imagem e Palavra (2018).
O recurso de repetir certas angulações de câmera e mesmo certos planos reforça essa impressão, e não é coincidência que algo semelhante também apareça em O Acidente, por exemplo, logo após o diálogo recém referido, quando a protagonista derrama um copo d’água sobre a mesa e pede para o adolescente filmar o ato. Logo em seguida, vemos o resultado do que foi filmado, e este mostra-se nitidamente diferente do que havíamos visto antes.
Se considerarmos a linha de raciocínio largamente utilizada pelos pesquisadores do cinema segundo a qual a imagem pensa, sempre, independentemente da natureza do registro, podemos considerar que estamos diante de uma experiência dupla: absorver o que a imagem diz (os afetos que desperta) e o que a manipulação do cineasta a leva a dizer (o afeto que ele tem por ela). É interessante, a partir disso, notar o quanto Mirante se descola de boa parte desses outros filmes gaúchos recentes, que são mais pesados, introspectivos, repletos de registros de opressão social e, não raramente, violência. Rodrigo John é mais celebratório, construindo uma sinfonia, se não mais colorida, mais musical. A metrópole brasileira que ele registra também está carregada no cinza, mas, devidamente filtrada, ganha vida. Seu trabalho de composição é em si um processo de embelezamento, como se nos advertisse a olhar, seguir olhando, insistindo – porque ver o belo é possível, é acessível, é real.
Mirante
De Rodrigo John, documentário, 78 minutos. Em cartaz na Cinemateca Capitólio e no Espaço de Cinema do Bourbon Shopping Country, em Porto Alegre.
O Acidente
De Bruno Carboni, drama, 95 minutos. Em cartaz no CineBancários e na Sala Eduardo Hirtz, em Porto Alegre