Mesmo quando esteve mais voltado aos temas urbanos, o cinema gaúcho nunca abandonou a mitologia do Pampa. O curioso é que, em um momento de renovação, como foram os últimos anos, essa mitologia não apenas se manteve presente, mas apareceu de forma renovada. Cineastas de gerações que há pouco chegaram ao longa-metragem têm lançado olhares em claro deslocamento, mirando desde a Capital um Interior envolto em um imaginário de opressão e incomunicabilidade que não raro desemboca em violência.
Primeiro longa de Giovani Borba, Casa Vazia (2021), que estreia na próxima quinta-feira no circuito de cinemas, visita a mesma fronteira repleta de solidão de Mulher do Pai (2017), de Cristiane Oliveira, e o mesmo universo de desolação relacionado ao trabalho rural em tempos de transição para a pecuária extensiva, os latifúndios e a monocultura da soja visto em Rifle (2016), de Davi Pretto. O protagonista, peão de estância interpretado pelo ator estreante Hugo Noguera, é uma releitura da figura mítica do campesino pampeano. Não está ele próprio em viagem pelas planícies da região, tal qual o gaucho típico, mas encarna em sua identidade esses movimentos representativos, ao mesmo tempo, da busca pelo seu lugar no mundo e das dificuldades de encontrar-se nessa jornada.
Está tudo nele, e sabemos não pelo que ele diz, que é muito pouco, mas pelo que seus atos e expressões (silenciosas) sugerem. Desempregado e em dificuldades financeiras, ele se junta a um bando de ladrões de gado. De um lado, é pressionado pelo líder da equipe de segurança de uma grande propriedade local (Nelson Diniz) a aceitar o trabalho de policiamento justamente contra o abigeato cometido por grupos como o dele. De outro, é o líder do bando (Roberto Oliveira) que, sabendo do apelo do emprego “direito”, teme perdê-lo e promove uma constante intimidação. O que fazer? Aonde ir? Ele não sabe, e é por isso que não responde, ou melhor, só concorda, sempre concorda, com ambos, por mais que seja contraditório.
O novo gaucho é esquivo, retraído e suscetível a pressões porque está fragilizado. Em Casa Vazia, esse anti-herói não apenas deixou de lado a idealização do centauro do Pampa; ele substituiu o cavalo pela bicicleta, em uma imagem das mais interessantes de sua mundanidade atual. É uma figura menos literária e mais literal, mais cinematográfica, inclusive, que se aproxima de outros personagens que o cinema construiu para representar a fronteira empobrecida pelas desigualdades, casos, por exemplo, daqueles vistos em O Banheiro do Papa (2007), de César Charlone – com a fundamental diferença de que a luz solar e esperançosa (apesar de tudo) do filme de Charlone é oposta ao visual soturno e de cores desidratadas proposto por Ivo Lopes Araújo, o diretor de fotografia de Casa Vazia.
As raízes desse personagem também estão sugeridas no filme de Giovani Borba. Sua mãe é interpretada por Araci Esteves, a inesquecível “mãe coragem” de Anahy de las Misiones (1997), produção dirigida por Sérgio Silva que contou a dissolução de uma família “sem pai” peregrinando pelo Pampa durante a Guerra dos Farrapos. O destino do novo gaucho é igualmente trágico e tem a ver com a dissolução de seu lar, como sugere o título de Casa Vazia. Mas, diferentemente das clássicas representações dessa figura, agora ele tem um lar. A dificuldade é mantê-lo.
A desesperança advém de um olhar que, em vez de focar o passado, está concentrado no presente, vislumbrando o futuro. Essa é a essência da renovação. E ela permite paralelos com a contemporaneidade urbana, até porque não há restrições geográficas nas desigualdades registradas hoje, no desamparo, nos deslocamentos e nos desencontros que advêm destas.
Casa Vazia chega ao circuito depois de exibições e prêmios no Festival do Rio (melhor fotografia) e na mostra gaúcha do Festival de Gramado (melhor ator, roteiro, trilha sonora, desenho de som e fotografia). São reconhecimentos que contemplam diversas áreas técnicas – som, imagem, texto e interpretação –, atestando a qualidade da produção como um todo. Nesse sentido, faz diferença vê-la, se possível, na sala de cinema, onde a imersão na trama é maior e a contemplação de seus belos planos, mais efetiva.
Casa Vazia
De Giovani Borba. Com Hugo Noguera, Araci Esteves, Nelson Diniz, Roberto Oliveira e Liane Venturella. Drama, Brasil, 2021, 88min. Estreia na próxima quinta-feira (3/8) em Porto Alegre.