Por Daniela Strack
Pesquisadora e assistente de direção de cinema. Graduada em Cinema (PUCRS), mestra em Comunicação (UFRGS)
Nos últimos anos, a repetida imagem de labaredas consumindo de modo voraz prédios históricos tornou-se símbolo do descaso do poder público com a memória cultural brasileira – a exemplo do incêndio da Cinemateca Brasileira em 2021. A Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), por exemplo, critica o fato de que mesmo em governos sensíveis à agenda cultural o foco dos investimentos está majoritariamente voltado para a produção de novos filmes, com um olhar limitado para a filmografia já produzida pelo cinema brasileiro.
Sem uma política pública clara e estável de preservação audiovisual, as ações de conservação e restauração fílmica, bem como dos materiais correlatos – documentos de filmagem, roteiros, matérias de jornais etc. – ocorrem quase à revelia, através da dedicação diária de servidoras/es das cinematecas e de seus acervos, mas também de cineastas, pesquisadoras/es e cinéfilas/os. Em Porto Alegre, por trás das fachadas de prédios históricos como os da Cinemateca Capitólio e da Casa de Cultura Mario Quintana, que abriga a Cinemateca Paulo Amorim, há um trabalho silencioso daqueles que zelam pela memória do nosso cinema e do qual a ponta mais visível é a excelente programação de suas salas de cinema.
O recente lançamento do Portal do Cinema Gaúcho, elaborado pelo Núcleo de Pesquisa, Informação e Memória do Instituto Estadual de Cinema do RS (Iecine), lança luz à uma parte menos visível, mas não menos importante desse trabalho. O portal é uma base de dados que objetiva catalogar a produção de filmes realizados no Estado ou que se relacionam de modo mais amplo com cultura gaúcha – como os sobre Getúlio Vargas, Caio Fernando Abreu, dentre outros. Atualmente, a base de dados tem informações de 788 produções, em um esforço de mapear todos os longas-metragens gaúchos desde o período silencioso até os dias atuais. Somam-se a esses filmes outras produções de longa duração que registram concertos musicais ou peças de teatro e que foram lançados em DVD.
Assim como a Filmografia Brasileira, base de dados mantida pela Cinemateca Brasileira, o Portal do Cinema Gaúcho disponibiliza informações confiáveis sobre os filmes indexados, como seu ano de lançamento, os festivais percorridos, o suporte de gravação e de distribuição, além da ficha técnica. O diferencial do portal está no grau de detalhamento das informações, já que elas foram indexadas não só pela coleta de dados de divulgação e de distribuição, mas do visionamento dos filmes. Isso possibilitou a inclusão das fichas técnicas completas, englobando desde as fontes de financiamento até a totalidade dos nomes que constam nos agradecimentos de cada produção.
Para fins de pesquisa em audiovisual, essa pluralidade é extremamente rica e permite traçar uma série relações entre os filmes. Ao buscar o nome de um profissional no portal, por exemplo, é possível não só encontrar os filmes dirigidos por ele/a, mas também a participação às vezes nem tão evidente que cineastas gaúchos têm nas produções uns dos outros e que estão expressas numa ampla gama de creditações. Ou, ainda, é possível explorar diversas questões sobre os modos de financiamento de um conjunto de filmes ou sobre a circulação do cinema gaúcho em determinados festivais. Grande parte do mérito pela miríade de possibilidades que as buscas na plataforma oferecem é do pesquisador Glênio Póvoas (coordenador do projeto), da crítica e pesquisadora Fatimarlei Lunardelli e do cineasta e professor Giba Assis Brasil, ambos responsáveis pela concepção e pelo desenvolvimento dos campos e funções da ficha técnica que compõe o portal.
Trata-se de uma iniciativa relevante para abrigar parte importante da memória do nosso cinema, assim como para estimular a produção de conhecimento sobre ela. Entretanto, preservar essa memória é também preservar os locais que são sua salvaguarda. Não à toa, mesmo sendo virtual o portal reivindica a Cinemateca Paulo Amorim como sua casa. Agora, cabe a nós reivindicar mais lugares para memória cinematográfica gaúcha: um espaço para os curtas-metragens, séries e outros formatos no Portal do Cinema Gaúcho, além de mais espaço físico para a conservação de acervo nas cinematecas Paulo Amorim e Capitólio, bem como investimento do poder público na restauração e preservação de cópias. E, por fim, a valorização dos espaços de exibição já existentes, como as cinematecas, mas também a Sala P.F. Gastal – fechada desde 2017 em virtude da interminável obra na Usina do Gasômetro – e a manutenção de sua gestão pública pela Coordenação de Cinema e Audiovisual (Smec/POA). Afinal, qual o melhor lugar para manter viva memória das imagens do que colocá-las em movimento na sala de escura do cinema?
Como acessar
O Portal do Cinema Gaúcho pode ser acessado dentro do site da Cinemateca Paulo Amorim, em cinematecapauloamorim.com.br/portaldocinemagaucho