Vai passar por Porto Alegre, no segundo semestre, uma mostra de 17 filmes realizados entre 1929 e 2019 que quer apresentar para o Brasil o trabalho de preservação, restauração, documentação e difusão da produção audiovisual nacional desenvolvido pela Cinemateca Brasileira. Trata-se de uma instituição localizada em São Paulo que, perto de comemorar de seu 77º aniversário, vive uma espécie de renascimento. Está sob nova gestão, da organização social Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC), que em janeiro de 2022 firmou um contrato de cinco anos com o governo federal — o repasse anual é de R$ 14 milhões, e em contrapartida a SAC deve captar 40% desse valor. E também conta com patrocínio estratégico do Instituto Cultural Vale, patrocínio máster da Shell e copatrocínio do Itaú Unibanco (todos mediante renúncia fiscal, via Lei Rouanet) para o projeto Viva Cinemateca, que foi apresentado nesta quarta-feira (7). Os investimentos permitem revitalizar o acervo, modernizar o espaço cultural e, fazendo jus ao slogan — Memória em movimento —, percorrer o país com a programação itinerante: além da capital gaúcha, serão visitadas Belo Horizonte, Brasília, Canaã dos Carajás (Pará), Curitiba, Fortaleza, João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Luís e Vitória.
Fundada em 7 de outubro de 1946, a Cinemateca Brasileira é considerada o maior acervo sul-americano de curtas, médias e longas de ficção, documentários, seriados, reportagens de TV e afins. Por meio do chamado Depósito Legal, todas as obras audiovisuais financiadas com recursos públicos federais devem ter uma cópia preservada no local. No total, são mais de 250 mil rolos de filme, e há ainda os mais de 70 mil livros, revistas, jornais, catálogos e artigos acadêmicos da Biblioteca Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), personagem central para o surgimento da instituição.
Nos últimos anos, a Cinemateca Brasileira enfrentou uma série de crises. Em fevereiro de 2016, um incêndio na sua sede, na Vila Clementino, destruiu cerca de 500 originais de longas-metragens e cinejornais da década de 1940 — a sorte é que havia cópias digitais de quase todo esse conteúdo. Em 31 de dezembro de 2019, terminou o contrato de gestão firmado entre o governo federal e a organização social Associação Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), e não houve uma nova licitação. Em fevereiro de 2020, foi a vez de uma enchente alagar um galpão da subsede, na Vila Leopoldina, atingindo principalmente mobiliário, fotografias, livros e folhetos. Nesse mesmo ano, não bastasse o impacto da pandemia de coronavírus, a instituição foi abandonada pela União, que não repassou verbas para pagar salários e manutenção. Precisou fechar as portas em agosto e ficou praticamente parada por 16 meses, período no qual sofreu novamente com o fogo, em julho de 2021, na Vila Leopoldina. Perdeu-se quatro toneladas de documentos e equipamentos, incluindo parte do conjunto pertencente ao cineasta Glauber Rocha (1939-1981), autor de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe (1967) e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969). Só reabriu em maio do ano passado, já sob a gestão da SAC, que já havia administrado o espaço entre 2008 e 2013.
Em visita da qual GZH participou na terça (6), a diretora geral, Maria Dora G. Mourão, professora titular aposentada da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), lembrou que a maré de infortúnio trouxe, pelo menos, uma onda de solidariedade. Tanto da comunidade cinematográfica quanto da comunidade da Vila Clementino, que frequenta bastante a Cinemateca Brasileira desde o início dos anos 1990, quando a instituição passou a ocupar a área de 24 mil metros quadrados e os galpões do último matadouro paulistano, desativado em 1927. O interesse não é só por causa das sessões de cinema gratuitas e ecléticas: na mesma semana, podem estar em cartaz obscuras produções nacionais da primeira metade do século 20 e aclamados títulos da Disney, ou um ciclo dedicado ao diretor David Lynch e outro ao nordestern, os filmes sobre o cangaço, e há ainda as mostras realizadas em parceria com consulados. Essas exibições ocorrem de quinta a domingo na Sala Grande Otelo (para 210 espectadores) e na Sala Oscarito (105) — ambas equipadas para projeção de película 35mm, o que as tornam raridades em um mercado dominado pelos formatos digitais — ou na enorme tela ao ar livre. Moradores também comparecem para adquirir produtos nas feiras realizadas por lá e para conviver nos jardins públicos.
— Tivemos 70 mil visitantes no ano passado. Em 2023, em menos de seis meses já alcançamos esse número — festejou Dora, que também comemorou os R$ 10 milhões extras que o Ministério da Cultura aportou em 2023: — Esperamos que continue sendo assim nos próximos anos. Aí a Cinemateca pode respirar melhor. Já pudemos aumentar a equipe, para tocar todos os projetos, atacar em todas as áreas, tudo funcionando ao mesmo tempo. Já são 90 técnicos, funcionários e administrativos, deveremos ter 100 até o final do ano. Ainda não são os 150 que havia até 2013, mas o número já é muito maior do que os 30 ou 40 de antes da nossa gestão.
Já a diretora técnica da Cinemateca Brasileira, a historiadora e especialista em arquivologia Gabriela de Sousa Queiroz, lamentou os 16 meses quase parados:
— É grave para uma entidade que luta justamente contra a ação do tempo. Quando chegamos, havia uma grande demanda reprimida na conservação, na restauração e na duplicação das obras, e a falta de cópias impacta em outra frente de atuação da Cinemateca, a difusão ("Dependendo do estado de preservação ou deterioração, a cópia de um longa-metragem pode levar de três dias a 30 anos", comentou um técnico).
— Uma cinemateca não pode ficar parada — complementou Dora, apontando para riscos como danos a equipamentos digitais que não são usados por muito tempo e, principalmente, a combustão espontânea dos filmes de nitrato de celulose, material empregado nos primórdios do cinema.
Por serem altamente inflamáveis, os filmes de nitrato requerem um ambiente sem ar-condicionado nem luz elétrica (para evitar fagulhas incendiárias), com teto vazado (para exaurir os gases liberados pelo material e também, em caso de pegar fogo, as labaredas). Revisões periódicas são necessárias: os técnicos precisam girá-los pelo menos uma vez por ano.
Aliás, de modo geral os rolos de qualquer tipo de filme exigem uma série de cuidados para que possam sobreviver por 100, quem sabe 200 anos. Por exemplo: os de acetato são mantidos em depósitos frios (de 9ºC a 10ºC no caso dos coloridos, de 11ºC a 12ºC se forem em preto e branco) e ficam de 24 a 48 horas em uma antecâmara antes de serem tirados de lá e também no retorno, para não sofrerem um choque térmico que pode umidificá-los.
Há um outro trabalho fundamental para a memória audiovisual brasileira: o de identificação e catalogação, que inclui alimentar o banco de dados Filmografia Brasileira, com informações de aproximadamente 52 mil títulos de todas épocas, sejam curtas, médias ou longas-metragens; cinejornais, filmes publicitários, institucionais ou domésticos; e obras seriadas (para internet e televisão).
É nesse campo que atuam o pesquisador sênior Rodrigo Archangelo e uma equipe de 14 historiadores, jornalistas e graduados em cinema, entre outras formações. Eles estão envolvidos sobretudo com o projeto Nitratos do Brasil, um dos principais objetivos do vértice da preservação dentro da campanha Viva Cinemateca. Outro será a restauração, duplicação e difusão dos cinejornais do lendário Canal 100, que marcou o país entre 1957 e 1986 sobretudo com suas coberturas futebolísticas, narradas por Cid Moreira e Corrêa Araújo e embaladas pela música Na Cadência do Samba, de Luiz Bandeira ("Que bonito é...").
Quando o projeto Nitratos começou, havia pelo menos 1,8 mil obras por serem examinadas, descritas, categorizadas. Entre as descobertas recentes, está a do item mais antigo da Cinemateca Brasileira: um documentário sobre cerimônias na Catedral de Santa Maria, rodado em 1909 e exibido em 1910 por Eduardo Hirtz (1878-1951), alemão que foi o pioneiro do cinema no Rio Grande do Sul. Também já foram encontrados fragmentos das filmagens feitas em 1946 pela Comissão Brasileira Demarcadora de Limites que, sugere Archangelo, "devem ser os registros mais antigos dos povos indígenas de Roraima".
— O trabalho da Cinemateca é fazer o Brasil conhecer a si mesmo — define o pesquisador.
Pois chegou a hora de o Brasil conhecer a Cinemateca — e de a Cinemateca deixar de ser percebida como "paulista", ressaltou Dora Mourão. A mostra que vai circular pelo país entre agosto e dezembro, tendo a Cinemateca Capitólio como seu destino porto-alegrense (provavelmente em outubro), fará uma síntese da filmografia nacional e de suas regionalidades. Vai do documentário São Paulo, Sinfonia da Metrópole (1929) ao fenômeno pernambucano Bacurau (2019). Vai do baiano Glauber Rocha ao gaúcho Jorge Furtado. No caminho, ilustrará diversos períodos, incluindo as chanchadas (Carnaval Atlântida) e o cinema marginal (O Bandido da Luz Vermelha), celebrará nomes como o de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, e Eduardo Coutinho, mestre dos documentários, e destacará títulos que colocaram o país no mapa-múndi cinematográfico, como O Pagador de Promessas (1962), único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, e Cidade de Deus (2002), que concorreu ao Oscar nas categorias de melhor direção, roteiro adaptado, fotografia e montagem.
(*) O colunista viajou a convite da Cinemateca Brasileira