O incêndio que atingiu o galpão da Cinemateca Brasileira, na zona oeste de São Paulo, na noite de quinta-feira (29), foi lamentando por diversos cineastas nas últimas horas. De acordo com informações do Jornal Nacional, no local ficavam gravados 1 milhão de documentos da antiga Embrafilme, como roteiros, artigos em papel, cópias de filmes e documentos antigos. A extensão dos danos ainda está sendo estimada.
Pelas redes sociais, Kleber Mendonça Filho, diretor de filmes como O Som ao Redor e Aquarius e membro do júri do Festival de Cannes 2021, falou sobre a perda do acervo da instituição. "Um incêndio atingiu a Cinemateca Brasileira na noite passada, em São Paulo. Quatro toneladas de material foram perdidos. Após o incêndio no Museu Nacional do Rio e múltiplos pedidos de ajuda na comunidade do cinema (20 dias atrás, eu falei sobre isso em Cannes), nada foi feito. Não parece que isso foi um acidente", escreveu ele, no Instagram, em inglês.
A cineasta Laís Bodansky, de obras como Bicho de Sete Cabeças e Como Nossos Pais, citou que o galpão teria mais de "2 mil cópias de filmes da história do audiovisual brasileiro". Em entrevista ao J10, da Globonews, ela também afirmou que é um momento "de luto pro audiovisual brasileiro, pra nossa indústria do cinema brasileiro, porque de fato nossa memória está sendo apagada".
"É uma tristeza geral. Quando vi a notícia, o choro veio, entalou na garganta porque é inacreditável. É inacreditável porque não é por falta de aviso de forma alguma, não por falta de o próprio setor se movimentar, pedir ajuda, a sociedade civil se mobilizou. Se algumas coisas foram feitas, foi por causa dessa mobilização. Mas não dava pra fazer. Nos grupos de WhatsApp que participo, todo mundo está se perguntando: ‘Faltou alguma coisa que a gente não fez?’. Está todo mundo se culpando: ‘O que a gente poderia também ter feito a mais?’. Então tem muita dor, muita tristeza", relatou.
Em entrevista ao Em Pauta, também na Globonews, o cineasta Lauro Escorel, de títulos como Sonhos Sem Fim, citou os incêndios ocorridos no Museu Nacional e Museu da Língua Portuguesa e descreveu a perda do acervo da Cinemateca como uma tragédia. "Não é possível que a gente siga com tantos incêndios. Não é só o acervo do Glauber Rocha, são muitos filmes, parecem que são toneladas de documentação, a história do cinema brasileiro".
Já Sandra Kogut, diretora de obras como Três Verões, destacou o trabalho da Cinemateca, considerada a principal instituição de preservação do audiovisual do país. "Muito importante a gente dizer que a Cinemateca não é um depósito de filmes, é algo muito maior do que isso. A gente tem ali registros de quem a gente é. Eu, por exemplo, só faço filmes porque antes de mim, muitas pessoas fizeram. E foi vendo esses filmes, dessas pessoas, que eu me tornei uma pessoa que faz filme. E a gente tem o registro ali de como as pessoas no Brasil falavam, gesticulavam, viviam, ao longo dos últimos cem anos", comentou.
Em seguida, Kogut afirmou que "trabalhar em um acervo como esse, requer muito saber, muito conhecimento". "Os filmes que estão ali pedem atenção constante. Eles precisam ser manipulados, precisam estar conservados em condições muito específica de temperatura, umidade, então é uma tragédia de proporções realmente gigantescas", acrescentou.
Nomes ligados à gestão da Cinemateca também lamentaram o ocorrido. Francisco Campera, diretor da Fundação Roquette Pinto, ex-gestora da Cinemateca, afirmou que chegou a dar depoimento ao Ministério Público Federal (MPF), que em julho do ano passado ajuizou uma ação civil contra a União por abandono do local, e ressaltou a questão da conservação. "O último incêndio anterior a esse foi em 2016 e tinha 13 pessoas do mais alto nível trabalhando de segunda a segunda e mesmo assim teve o incêndio. Porque precisa do monitoramento humano. Eu avisei aos funcionários que tomaram posse. Tem mais de um ano, e até hoje não tem monitoramento humano."
Segundo Campera, “perdeu-se 4 toneladas de documentação da história do cinema brasileiro. Toda a documentação do Instituto Nacional de Cinema, da década de 1960, até hoje da Secretaria Especial de Cultura, passando pela Embrafilme e pela Concine. Há também cópias de filmes, mas que já estavam em estado pior de conservação”, afirmou.
Ex-diretor da Cinemateca Brasileira e ex-secretário de Cultura de São Paulo, Carlos Augusto Calil, hoje presidente da Sociedade Amigos da Cinemateca, classificou o incêndio como um "desastre" e lembrou que este foi o 5º incêndio sofrido pela instituição - o primeiro ocorreu em 1957. "O que se perdeu agora no depósito foi o que havia sobrevivido à inundação de fevereiro de 2020. O que a água começou o fogo terminou", disse ao jornal O Estado de S. Paulo.
Em nota, a Secretaria Especial da Cultura também lamentou o ocorrido e destacou que está acompanhando a situação de perto. No documento, o órgão apontou que "todo o sistema de climatização do espaço passou por manutenção há cerca de um mês como parte do esforço do governo federal para manter o acervo da instituição".
Situação precária
Muitas das manifestações dos cineastas se referem a um impasse com o governo federal que vem se agravando nos últimos meses. O contrato que a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) tinha com o governo para administrar o local se encerrou em 2019 e, depois disso, funcionários foram demitidos e contas ficaram em atraso.
A medida ajuizada pelo MPF no ano passado solicitava, em caráter de urgência, a renovação de contrato com a Acerp até o fim de 2020. Na ação judicial, a promotoria destacou problemas como risco de incêndio, falta de vigilância, atrasos nas contas de água e luz, além do não pagamento de salários.
O governo federal, no último mês de janeiro, escolheu a Sociedade Amigos da Cinemateca para assumir a gestão do local em caráter emergencial, até que uma nova organização social assuma a administração.
Em maio deste ano, o MPF suspendeu a ação contra a União depois que o governo federal se comprometeu a mostrar as ações implementadas pela preservação do patrimônio no prazo de até 45 dias.