Há no cinema gaúcho contemporâneo um deslocamento do olhar para além da metrópole. Movimento que não é radical como aquele que, décadas atrás, tornaria anacrônico o ciclo de aventuras campeiras apresentando filmes sintonizados com a juventude urbana que crescia sob o regime militar. Mas que tem seu simbolismo no espelhamento que faz de temas universais em cenários até pouco tempo incomuns na produção local.
Estreia em longa-metragem da diretora porto-alegrense Cristiane Oliveira, Mulher do Pai, em cartaz a partir desta quinta, em 40 salas do Brasil, vai ao interior profundo do Rio Grande do Sul observar um rito de passagem juvenil pontuado pelos recorrentes conflitos existenciais e afetivos.
Mulher do Pai tem como cenário a Vila de São Sebastião, em Dom Pedrito, região da campanha fronteiriça com Uruguai. Ali, a adolescente Nalu (Maria Galant), 16 anos, encara um momento de tensão na convivência com o pai viúvo e turrão, Ruben (Marat Descartes), que ficou cego quando adulto e, com a morte da avó da garota, torna-se dependente da filha, para ele quase uma estranha. Esse relacionamento frio encontrará turbulências no desejo da menina em sair daquele fim de mundo, no seu despertar sexual e na entrada em cena de uma professora uruguaia, Rosario (Verónica Perrota), que, ao mesmo tempo, estimula Nalu a sonhar com a ruptura de amarras e inicia um envolvimento com Ruben.
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A estreante Mari Galant, selecionada em teste de elenco, Marat Descartes, ator com destacado currículo no cinema autoral nacional, e Verónica Perrota, que trabalhou em longas uruguaios como Whisky, imprimem vigor e autenticidade em seus personagens, mérito deles e do eficiente trabalho de direção. Cristiane conjuga com sensibilidade poucos diálogos e os silêncios que fazem pulsar os cenários naturais ilustrativos de solidão e estagnação, precisamente captados na fotografia assinada por Heloisa Passos.
Autora do roteiro do longa que lhe valeu em 2016 o prêmio de melhor direção no Festival do Rio, Cristiane, 37 anos, sintetiza em Mulher do Pai vivências pessoais e profissionais – no seu premiado curta Messalina (2004), apresentou personagens cegos:
– Quando tinha 16 anos, também passei por um processo de reaproximação com meu pai. Queria desenvolver esse tema em um lugar que representasse a condição do isolamento, contrastando a percepção de clausura com um espaço muito aberto. Aos poucos, entraram elementos como essa região ser na fronteira e ter uma pessoa de fora chegando para renovar o ar dessa família. Na pesquisa para o Messalina, conheci um homem que havia ficado cego aos 30 anos, condição que gera muita angústia por envolver a perda da memória visual.
Antes que o Mundo Acabe (2009), de Ana Luiza Azevedo; Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho; Morro do Céu, de Gustavo Spolidoro; A Última Estrada da Praia (2010), de Fabiano de Souza; Dromedário no Asfalto (2014), de Gilson Vargas, Beira-Mar (2015), de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon; o ainda inédito Rifle (2016), de Davi Pretto. São alguns dos títulos mais recentes que retratam em diferentes pontos do Estado, da Serra ao Litoral, passando pelo Vale do Taquari e seguindo de Porto Alegre em direção ao Uruguai, cada qual com suas particularidades, movimentos de busca, resignação ou transição de adolescentes e jovens adultos. Mulher do Pai adiciona o protagonismo feminino.
– A lida agropecuária na Campanha não abre muitos espaços para o trabalho da mulher. Quando exibimos o filme em São Sebastião, uma menina da idade na Nalu disse que gostaria de estudar fotografia. Estudar é um caminho para sair desses lugares. E muitos jovens garantem que não deixariam suas cidades se nelas encontrassem educação, melhor infraestrutura e atividades culturais onde nem uma festinha tem.
Cristiane comprovou com diferentes plateias que trata de uma questão universal. No começo de 2017, Mulher do Pai foi exibido na Mostra Generation do Festival de Berlim.
– Quem vive ou viveu em cidades muito pequenas se identifica. Em Berlim, uma agente de vendas da Bélgica falou que a Nalu lembrava muito ela no lugar onde cresceu. Ouvi o mesmo de uma espectadora em Florianópolis.
Combinando afinidade profissional e uma busca intencional, a cineasta reuniu, entre outras mulheres na equipe, a produtora-executiva Aletéia Selonk, a diretora de fotografia Heloisa Passos, a montadora Tula Anagnostopoulos e a diretora de arte Adriana Nascimento Borba.
– Com exceção da Heloisa, que convidei por admirar o trabalho dela com as imagens de Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (premiado docudrama de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, de 2009), são parceiras com quem já trabalhei. Acho que a presença da mulheres na realização de cinema tende a aumentar. Minha realidade é diferente daquela da minha avó. Uma nova geração de meninas já cresce conscientizada sobre questões como identidade de gênero no mercado de trabalho. Chegaremos a um ponto em que isso não será mais razão de discussão em qualquer tipo de atividade.
Mulher do Pai é uma realização da Okna Produções, em parceria com a produtora uruguaia Transparente Filmes. O projeto foi contemplado pelo edital de coprodução Brasil-Uruguai da Ancine e pela linha do Fundo Setorial voltada para longas autorais focados na renovação da linguagem.
– Acredito que esse interesse de cineastas pelo interior gaúcho vem também da oportunidades de filmar, dos recursos de produção, porque esse deslocamento exige uma logística mais complexa. O projeto Mulher do Pai começou em 2009 e só pude realizá-lo quando houve uma reformulação das políticas restritivas do setor audiovisual, que permitiu a criação desse edital de coprodução com o Uruguai para estimular novos olhares – diz Cristiane, que já planeja seu próximo longa. – Também será no Interior, em uma região de lagoa, com uma protagonista de 12 anos. É um roteiro meu com a (atriz) Silvia Lourenço. Planejo filmar no primeiro semestre de 2019.
Mulher do Pai
De Cristiane Oliveira Drama, Brasil/Uruguai, 2016, 94min, 14 anos.
Estreia nesta quinta-feira no Espaço Itaú, no GNC Moinhos e na Sala Eduardo Hirtz.