Provocador aos 84 anos, Jean-Luc Godard subverteu as convenções da linguagem cinematográfica até, aparentemente, decretar seu fim. Mas Adeus à Linguagem é apocalíptico apenas no título - que, aliás, também é subvertido nos letreiros que aparecem na tela, em três dimensões (as letras de "adeus" se reorganizam como "ah, Deus" e o "au langage" original vira "oh, linguagem").
Sim, o revolucionário mestre dos anos 1960 fez um filme em 3D. Para vê-lo conforme foi concebido, contudo, você só tem a opção do Cinemark Barra - as salas do GNC Moinhos e do Guion Center o apresentam em sua versão 2D. O longa entra na grade de programação nesta quinta-feira.
Leia abaixo: atores contam como é trabalhar com Godard
Adeus à Linguagem é um ensaio visual recheado de imagens das mais diversas texturas, muitas delas totalmente retrabalhadas na pós-produção. Há apenas um fiapo de história: uma mulher e um homem se amam e discutem, em uma relação marcada pela falta de comunicação. Isso pode remeter a alguns títulos da nouvelle vague, mas o novo longa tem mais a ver com os trabalhos recentes de Godard. Com uma diferença: é ainda mais radical do que Filme Socialismo (2010) e Nossa Música (2004).
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Se há algo que marca Adeus à Linguagem é a sobreposição. De elementos visuais, citações filosóficas e políticas. Um homem lê o que o historiador Solzhenitsyn escreveu sobre os gulags soviéticos e, enquanto folheia o livro, cita o Google e divaga sobre o uso do dedo polegar - o polegar opositor que diferencia o homo sapiens e, no plano seguinte, é usado no toque da tela de um smartphone para acelerar o acesso a informações históricas. É a mão do genial criador: em segundos, Godard lança várias provocações que põem em perspectiva toda a trajetória do homem ocidental.
A relação do casal é, como tudo o que compõe o filme, metafórica. Talvez a mais eficiente de todas as provocações seja a onipresença do cachorro Roxy Miéville (suprema ironia, premiado no Festival de Cannes). Ele funciona como um intermediário - entre o casal, entre o homem e a natureza etc. As imagens representativas de seu ponto de vista - em 3D! - materializam o esculacho do cineasta ao redivivo recurso técnico tido como a "salvação da indústria". Ainda que apresentado na forma do que se poderia chamar um "antifilme", seu "adeus à linguagem" é uma chamada à razão - em defesa do cinema.
É contraditório, sim, e nisso Adeus à Linguagem revela alguma incoerência: ao mesmo tempo em que zoa o 3D, Godard depende dele para a fruição do espectador.
No set com o mestre
De passagem por Rio e São Paulo para divulgar 'Adeus à Linguagem', os atores Héloïse Godet e Kamel Abdeli falaram com ZH sobre o projeto. E, principalmente, sobre como foi trabalhar com Godard. Confira seus depoimentos:
Kamel Abdeli:
"Meu encontro com Godard foi emocionante. Ele tem mais de 80 anos, mas é um artista contemporâneo. Montou um set com mais câmeras (cinco) do que técnicos para operá-las. Sabia exatamente o que queria, o que tornou tudo muito rápido. Seu controle do espaço e do equipamento era impressionante: falava com autoridade sobre cada recurso que as câmeras possuem. Também soube deixar os atores muito à vontade, sempre enfatizando nossa liberdade de movimentos e expressão. Filmar com ele foi uma experiência inesquecível. E uma honra. Imagina, ficamos nus em um filme 3D do Godard. Talvez isso nunca se repita, com nenhum outro ator."
Héloïse Godet:
"Foi um choque ver o que ele fez com as imagens na pós-produção. O que havíamos visto no set era algo completamente diferente... Mas Godard sempre demonstrou humildade. Foi o que mais me surpreendeu: sua generosidade e sua capacidade de nos deixar confiantes. Pessoalmente, ele não tem nada a ver com a imagem de mito inacessível que se pode ter à distância. A metodologia dele é que tem umas particularidades. Não fizemos a preparação com ele, por exemplo. Só o encontramos no início do projeto, quando recebemos um roteiro minúsculo, e na hora de filmar. Quando nos entregou esse roteiro, estava preocupado se teríamos entendido a proposta. Ficou me olhando, e perguntou o que depreendi daquilo ali. Comecei a falar descrevendo imagens que me vieram à cabeça. Para ele, aquilo bastou. Maiores especificidades do projeto só fomos compreender, de fato, no set."
Adeus à Linguagem
De Jean-Luc Godard
Ensaio/experimental, França/Suíça, 2015, 70min, 16 anos.
Estreia nesta quinta-feira no Brasil. Em Porto Alegre, em cópias convencionais no Guion Center e no GNC Moinhos, e em sua versão 3D no Cinemark Barra.
Cotação: bom.