Uma ciclista é carregada no capô de um carro após tentar argumentar com uma motorista que a cortou. É arrastada por centenas de metros. Dentro do veículo, um pré-adolescente registra tudo com a câmera do celular. Mas o acidente que dá título ao filme gaúcho que chega aos cinemas nesta quinta-feira (24) não é exatamente este que ocorre no início da história. Há outros.
No último sábado (19), O Acidente foi contemplado com três Kikitos (Prêmio Sedac/Iecine) na mostra de longas gaúchos do 51º Festival de Cinema de Gramado: Melhor Atriz (Carol Martins, que vive a protagonista Joana), Melhor Direção de Arte (Richard Tavares) e Melhor Roteiro (Marcela Bordin e Bruno Carboni, que também é o diretor do longa). Antes, O Acidente passou por festivais internacionais e nacionais — como Tallinn Black Nights (Estônia), Festival do Rio, Cine Ceará, Festival de Torino (Itália) e a mostra Forward Future do Festival de Beijing (China), onde recebeu o prêmio de melhor roteiro.
O Acidente marca a estreia do porto-alegrense Bruno Carboni na direção de um longa. Antes, ele atuou na montagem de mais de 20 curtas — vide Damiana (2017), exibido em competição no Festival de Cannes — e 10 longas, como os elogiados Castanha (2014), Rifle (2016) e Beira-Mar (2015), entre outros. Seu primeiro curta como diretor foi Quarto de Espera (2009), codirigido com Davi Pretto, enquanto seu primeiro trabalho solo foi O Teto sobre Nós (2015).
A primeira ideia para O Acidente surgiu por volta de 2016, quando Carboni assistiu a um vídeo na internet em que uma ciclista era carregada no capô de um veículo dirigido por outra mulher — como na cena que abre o filme. Ninguém se feriu naquele incidente. Porém, o que chamou a atenção do cineasta foi a companhia da motorista: estranhou alguém cometer um ato tão violento acompanhado da filha. Ao mesmo tempo, ele percebia um simbolismo naquilo, um sentimento de hostilidade que se acentuaria com a polarização política.
Ainda, os pais de Carboni sofreram um acidente de carro, e ele ouvia muito a palavra "acidente" para descrever o que aconteceu. O termo ficou na cabeça do cineasta. Passou um tempo tentando refletir sobre o que era exatamente um acidente. Então, decidiu fundir o que estava acontecendo com a sua família ao vídeo da ciclista.
— Muitas pessoas podem pensar que o acidente do título se refere a esse evento inicial, mas eu gosto de pensar que é um filme construído a partir de diversos acidentes — explica. — Cabe ao expectador encontrá-los e pensá-los. O acontecimento inicial, talvez, nem seja um acidente.
Introspecções e distinções
Neste drama urbano, Joana é a ciclista, enquanto Elaine (Gabriela Greco) é a motorista. O filho desta, Maicon (Luis Felipe Xavier), estava no banco da frente. Ele registrou o incidente com o celular e publicou na internet. Apesar de sair sem ferimentos graves, a jovem esconde a ocorrência de sua parceira, Cecília (Carina Sehn). No entanto, o vídeo se torna um viral online, e Joana se vê obrigada a prestar queixa na polícia.
Por outro lado, Cléber (Marcello Crawshaw), ex-marido de Elaine, quer aproveitar o ocorrido para angariar a guarda de Maicon. Segundo ele, o filho tem se comportado de maneira estranha, se fechando em si, e a solução seria colocá-lo em uma escola militar. Afirma que a ex-esposa não tem condições psicológicas para criá-lo. Então, pede a Joana que deponha contra Elaine na batalha judicial.
Joana se surpreende com Maicon. Descobre um garoto introvertido, com um olhar singular do mundo, expressado por meio dos vídeos que publica na web. É praticamente um cineasta em construção. Seja por identificação, seja talvez por projetar questões pessoais no jovem, ela busca aproximação para entendê-lo. Então, os encontros entre mundos distintos acentuam incertezas e promovem transformações.
Assim como Maicon, Joana é introspectiva. Reticente com tudo que a rodeia, ela parece estar sufocada por incertezas. É um enigma desde o início do filme, quando passa por uma situação extrema e simplesmente se cala. Evita procurar a polícia, ir ao hospital ou relatar para a companheira. Sua omissão é inusitada. Ao não gritar para o mundo o que aconteceu, Joana está tentando frear as incertezas, como observa Carboni.
— No momento em que tu tentas fingir que a vida está igual, estás querendo frear um pouco o movimento, justamente os acidentes que podem ocorrer — aponta o cineasta. — Só que ela não consegue conter isso. É atropelada também pelos acontecimentos que vêm em seguida.
Rodado em Porto Alegre em 2019, O Acidente traz a paisagem das regiões centrais da Capital, como a Redenção. Conforme o diretor, uma das intenções era realizar um filme em que a cidade conseguisse se enxergar. Ao mesmo tempo, o longa carrega em si o contexto de polarização política que havia se iniciado no país poucos anos antes, trabalhando assim com o conceito de alteridade.
— É um encontro ali no trânsito que traz muitas diferenças. Há modelos de interagir e de se locomover. Concepções variadas de famílias — diz Carboni. —Uma das intenções era mostrar que mesmo nessa polarização existem pontos de contato, e as pessoas têm suas vidas modificadas umas pelas outras.