Por Diana Corso
Psicanalista, autora, entre outros, de “Tomo Conta do Mundo – Confissões de uma Psicanalista” (Arquipélago Editorial)
Você se lembra de Carrie, a jovem feiticeira que estreou num livro de Stephen King, em 1974? Aquela cujos poderes explodiram com a menstruação, assim como sua escola, seus colegas e o resto da cidade. Ela sobreviveu em sucessivas versões cinematográficas, a última de 2013. Haja insistência no pavor e fascínio pela força que desperta no corpo de uma mulher que se torna fértil.
O ano de 2022 trouxe uma nova representação ficcional da chegada da menstruação: nossa garota de 13 anos chama-se Meilin Lee, é de ascendência chinesa e vive no Canadá. Não é uma estranha acuada, como Carrie, ela é peculiar, gosta disso e não é isolada. O elogio da diversidade de corpos, estilos e origens é um diferencial do filme de animação da Pixar Red: Crescer É uma Fera. Porém, nem tudo mudou: essa época da vida de uma menina continua tendo um potencial explosivo. A primeira menstruação da personagem é simbolicamente representada por algo maior do que um fio de sangue. Ela passa a sofrer uma alternância entre a menina e a monstra, pois quando se emociona Meilin transforma-se numa enorme, peluda e assustadora panda vermelha.
Nas crenças populares, nas histórias que elas alimentam, as mulheres quando menstruadas são consideradas impuras, indignas de altares e oferendas. Mais do que a maionese desanda frente à simples presença desse sangue magicamente poderoso. E é hereditário: os poderes tele cinéticos de Carrie eram herdados de suas antepassadas, assim como a forma animal que Meilin assume está ligada a uma maldição que afeta as mulheres de sua linhagem.
A família da protagonista cuida de um templo, consagrado a uma divindade feminina representada por um panda vermelho. Nesse lugar, sua mãe – uma mulher exigente e controladora – ensina aos visitantes a tradição religiosa chinesa. Meilin tinha vida dupla, na escola era uma pré-adolescente comum, com seus ídolos musicais, suas paixonites platônicas, seu pequeno grupo de amigas fiéis. Em família, a rotina era de severa dedicação aos estudos, assim como aos valores e ritos da sua tradição. Tudo o que encantava Meilin entre seus pares era indesejável em casa. Quando a filha crescia, sua mãe ficava uma fera.
A transformação em panda vermelho era uma sina a que todas as mulheres da família estavam condenadas assim que atingiam a menarca. Livrar-se disso requeria um rito mágico realizado pelas parentes em uma data de “lua vermelha”. Meilin nada sabia desse perigo, sua mãe não a preparou, pois acreditava que bastava manter a filha longe das manifestações de sua sexualidade e da sua feminilidade para evitar a maldição. É uma forma do filme representar nossos silêncios, a dificuldade, entre mães e filhas, de encontrar palavras para transmitir nossas experiências, sentimentos, temores e sabedorias. As mulheres ainda estão descobrindo formas de dizer de si.
Pelo jeito, o despertar do corpo de uma jovem continua – quase 50 anos depois de Carrie – ainda metafórico de terríveis poderes femininos. Por sorte o tempo não passa em vão para a causa feminista, há neste filme três boas novidades. No século 21 há amigas dispostas a encarar juntas as tempestades de hormônios e navegar no mesmo barco; há ancestrais que, mesmo por caminhos tortuosos, oferecem um legado de experiências femininas; por último, os poderes podem ser manejados e transformados em dons.
A sororidade é a primeira bem vinda diferença, retratando-nos como empáticas e acolhedoras umas com as outras. Costuma se dizer que não teríamos essa ligação, pois seríamos fadadas a disputar à unha o privilégio de ser escolhidas pelos machos. Longe disso, as mulheres hoje têm muitos assuntos a tratar entre si, ainda se ocupam do amor, mas este é um dos elementos do vasto leque das preocupações, prazeres e destinos que elas compartilham. Aliás, um dos seus temas preferidos são suas mães.
Quanto às heranças femininas das quais se orgulhar, elas constituem uma novidade que se tornou frequente na animação infantil, atualmente cheia de avós mágicas e inspiradoras. As mulheres velhas já não são madrastas invejosas ou perigosas bruxas, como nos contos de fadas. Agora frequentam filmes infantojuvenis como sábias antepassadas, sendo que o encontro com essa herança feminina de magia e sabedoria acaba sendo o verdadeiro desafio da heroína. História após história, vamos tecendo uma narrativa que legitime, já desde a infância, a transmissão da experiência e do pensamento que as mulheres desenvolveram apesar de séculos de silenciamento.
Quanto às potências, riscos e encantos da feminilidade, nos encaminhamos a um tempo em que ser mulher ainda é difícil, mas certamente pode ser desejável, interessante e intenso. Em inglês, o título do filme (Turning Red) fala da transformação. Como já dizia a bruxa Simone de Beauvoir, não se nasce mulher, torna-se.
O filme
Red: Crescer É uma Fera, de Domee Shi. EUA, 100min, 2022. Disponível no Disney+