O drama Pieces of a Woman, que chegou à Netflix nesta quinta-feira (7), traz um plano-sequência intenso logo no primeiro ato. É angustiante: são 24 minutos alucinados de uma tentativa de parto natural, em casa. O espectador imerge naquela aflição, da sala para o banheiro, do banheiro para o quarto: será que o bebê está bem? Vai dar tudo certo? Há uma montanha-russa de emoções: desespero, esperança, euforia e dor. Um começo agitado para um filme introspectivo.
Em Pieces of Woman, a protagonista Martha decide ter sua primeira filha em casa. A personagem é interpretada por Vanessa Kirby (The Crown e Velozes & Furiosos: Hobbs & Shaw), na atuação mais destacada de sua carreira. Quem a acompanha no parto é seu marido, Sean (Shia LaBeouf). Eles recebem a parteira Eva (Molly Parker) para trazer o bebê ao mundo. Porém, logo após estar nos braços da mãe, a criança não resiste.
Dirigido pelo húngaro Kornél Mundruczó, o filme passa a acompanhar a dor e o luto do casal, organizando-se em capítulos espaçados nos meses que se seguem à tragédia — simbolicamente, segue a construção de uma ponte Boston. Sean é um ex-viciado que passa a recair em tentação. Por sua fez, Martha se fecha em si mesma. Taciturna, ela se arrasta no dia a dia. Os dois ficam cada vez mais distantes um do outro. A mãe de Martha, Elizabeth (Ellen Burstyn, em atuação calorosa), tenta convencer a filha a buscar justiça e processar a parteira. Com uma vida abastada, ela nunca escondeu sua antipatia pelo genro.
Ellen, aliás, entrega outro ponto alto do filme durante um monólogo em um jantar da família. Em close firme e ininterrupto, sua fala transita entre manipulação, bajulação, desprezo e impiedade. Durante uma sessão virtual de perguntas e respostas promovida pela Netflix nesta quarta-feira (6), da qual GZH participou, Ellen comentou que essa sequência foi um momento mágico:
–Às vezes, você começa a fazer uma cena e alguma coisa acontece, toma conta de tudo. É uma energia que rapidamente toma conta de mim. Você deixa de fazer a cena e ela começa a se fazer sozinha. Não dá para prever quando esses momentos vão acontecer, mas fico feliz quando eles chegam.
Embora ressalte interações frustradas e ressentimentos, o foco da narrativa está em Martha: seu isolamento, a raiva reprimida e sem direção que alimenta, seu sentimento de culpa, seu desamparo. Em como ela tenta processar uma dor tão profunda, com todos ao seu redor se tornando meros vultos. Pieces of a Woman faz uma observação minuciosa do estado de espírito arrasado de uma mulher, que a atuação de Vanessa carrega com muito mérito.
Pieces of a Woman teve sua première em setembro passado, no Festival de Cinema de Veneza, onde Vanessa levou o prêmio de melhor atriz. Ela já surge como aposta de indicação ao Oscar. Na coletiva, Vanessa contou que, após ler o roteiro, sentiu que o filme trazia uma importante representação da experiência feminina:
– Pensei: "Meu Deus, este é um retrato tão incomum do luto". Achei tão forte. Eu não acreditava, nunca tinha visto um nascimento assim no cinema antes. Senti que era importante fazer o filme. Porém, tive medo ao mesmo tempo
Vanessa queria retratar o sofrimento de Martha da forma mais autêntica possível. Para isso, a atriz encontrou-se com mulheres que enfrentaram essa experiência de perda. Sua intenção era compreender como se sentiram a cada hora, a cada dia. Chegou até a assistir a um parto.
– Eu tinha que tentar entender como se sentem de verdade e fazer justiça a elas. Nunca experimentei nada nesse nível – sublinha a atriz
Tabu
Kornél Mundruczó dirige um roteiro escrito por sua esposa, Kata Wéber. É o primeiro filme em língua inglesa do casal. Até então, haviam trabalhado em Deus Branco (2014), vencedor da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, e Lua de Júpiter (2017).
Pieces of a Woman surgiu como uma peça de teatro. Kata fez algumas anotações, e Kornél a encorajou a desenvolver a ideia que se transformaria em filme. O roteiro tem como inspiração uma experiência vivida pelo casal, que passou uma experiência de aborto espontâneo descrita como "bastante complicada".
– Eu nunca tive a intenção de escrever a respeito, mas eu comecei a mergulhar nesse universo. Foi uma terapia para mim. Foi como um ato de romper o silêncio, pois raramente se fala sobre isso. Enquanto escrevia, também me sentia curada, pois me dei conta que não estava só escrevendo sobre a perda, mas também falando de amor e como alguém pode se fortalecer – explicou Kata.
Sobre o plano-sequência, Kornél conta que filmou quatro takes, logo no primeiro dia de filmagens. A intenção do diretor era criar uma atmosfera pungente para uma experiência da vida cotidiana, conectando o público emocionalmente ao que está acontecendo.
– Não fomos ao ensaio muito a fundo, pois ficamos com medo de perder o espírito da coisa na hora de rodar. No final, foi miraculoso, pois conseguimos fazer a sequência com muita liberdade e espontaneidade – relatou o diretor.
Sobre a recepção positiva ao filme e as possibilidades ser cotado para premiações, Kornél comemora:
– Estamos muito gratos e felizes. Primeiro porque tivemos uma première presencial em Veneza, o que foi maravilhoso. Mas também por ver esta história tão intimista, que rompe o silêncio sobre um tabu, em que você assume muitos riscos com ela. A celebração ao redor do filme significa muito.
E o Shia?
Por outro lado, o nome de Shia LaBeouf vem sendo apagado na campanha de divulgação do filme. GZH mandou perguntas a respeito do ator, que não foram respondidas. Em dezembro, a cantora britânica FKA Twigs, ex-namorada de Shia, abriu um processo contra o ator por agressão e assédio sexual. Segundo Twigs, ele tentou estrangulá-la enquanto ela dormia, além de lhe passar conscientemente uma doença sexualmente transmissível.
O ator admitiu a culpa em entrevista ao jornal The New York Times, afirmando que não tem desculpas para seu alcoolismo e agressões, apenas "racionalizações". Também disse que tem sido abusivo consigo mesmo e com todos ao seu redor há anos: "Tenho um histórico de ferir as pessoas mais próximas de mim. Tenho vergonha dessa história e sinto muito por aqueles que magoei. Não há mais nada que eu possa dizer".