Eduardo Escorel imprimiu seu nome no cinema brasileiro assinando a montagem de, entre outros clássicos, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha; Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade; Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirzman; e Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho. Em sua trajetória como documentarista, o paulista de 72 anos apresenta agora um projeto ambicioso: Imagens do Estado Novo: 1937-45, filme com quase quatro horas de duração que será exibido a partir desta quinta-feira (19) no Espaço Itaú em duas partes, uma por dia, sempre às 19h20min.
O documentário passa em revista, com imagens de arquivo, muitas inéditas, garimpadas em acervos de diferentes países, o período em que o Brasil esteve sob o comando ditatorial do gaúcho Getúlio Vargas – foi o seu terceiro período no cargo, iniciado em 1930 à frente do governo provisório que assumiu o poder com um golpe, continuado com a eleição, em 1934, por uma assembleia constituinte, e seguido com a instauração, em 1937, do período consagrado como Estado Novo.
O filme faz uso de registros oficiais dos arquivos do Estado Novo, que copiou as técnicas midiáticas então em uso pelos nazistas na Alemanha para mostrar as múltiplas faces de um governo de viés autoritário e populista – mas que foi responsável por avanços notáveis no desenvolvimento econômico do Brasil e, em especial, na implementação da legislação trabalhista.
Adorado pelo povo, Vargas comandou o país em um período sombrio da história do século 20. O filme destaca, por exemplo, o jogo político que fez o presidente adiar sua tomada de posição na II Guerra. Vargas partiu de uma aproximação com Hitler, quando este parecia triunfar na Europa, para se alinhar com as forças aliadas capitaneadas pelos Estados Unidos.
Imagens do Estado Novo é o quarto capítulo de uma série de documentários históricos que já apresentou 1930: Tempo de Revolução; 32 – A Guerra Civil e 35 – O Assalto ao Poder. Escorel planeja ainda tratar do período que vai de 1945 até a posse de Juscelino Kubitschek, em 1956, incluindo o governo Vargas de 1951 a 1954, para, na sequência, encerrar seu projeto histórico com a eleição do primeiro presidente civil depois de 21 anos de governo militar, em 1985.
Leia a entrevista com Eduardo Escorel
No recente documentário No Intenso Agora, seu amigo João Moreira Salles diz que interpretar imagens é um ato político. Você exercita isso reinterpretando imagens oficiais da ditadura Vargas para colocar “a verdade” que elas representam sob um novo contexto. O que destaca como mais estimulante e desafiador nesse processo?
Aprendemos com Chris Marker e Harun Farocki a desconfiar das imagens, a não aceitá-las pelo seu valor de face. Essa lição abre, de fato, um campo de investigação estimulante e desafiador. No lugar do uso convencional da imagem para ilustrar um texto escrito previamente, passa a ser através da exegese das imagens que o texto é escrito. Venho trabalhando nessa direção de maneira incipiente pelo menos desde 1990, quando realizei o primeiro documentário da série, 1930 – Tempo de Revolução. Essa perspectiva de trabalho veio se desenvolvendo e acabou se consolidando na montagem de Santiago (2007), de João Moreira Salles.
Impressiona no seu filme a fartura e a qualidade das imagens de arquivo. Mesmo você tendo garimpado material do Estado Novo em seus projetos anteriores, que imagens inéditas destaca ter descoberto, e onde as encontrou para esse novo documentário?
Apesar da experiência adquirida com os documentários anteriores da série, além de outros filmes de arquivo que realizei, Imagens do Estado Novo: 1937-45 deve o acervo de imagens reunidas ao pesquisador Antonio Venancio e ao acesso que tivemos aos filmes depositados na Cinemateca Brasileira. Entre as imagens inéditas, creio que destacam as do Bundesarchiv, sobre a presença alemã no Brasil, na década de 1930, inclusive as da circulação livre da bandeira nazista. Além dessas, inúmeras imagens de Getúlio Vargas e Osvaldo Aranha, depositadas em arquivos americanos, completam o painel de imagens inéditas.
Apesar da riqueza de material audiovisual disponível sobre o Estado Novo e da importância que esse período tem para a história do Brasil, o cinema documental nacional pouco se dedica a ele, não tanto quanto a fatos e personagens ligados à ditadura imposta pelo golpe de 1964. Por que razão isso ocorre?
Por um lado, o Getúlio da década de 1950, eleito pelo voto direto, é mais lembrado do que o ditador de 1937 a 1945. Além disso, a ditadura estabelecida em abril de 1964, por ser mais próxima, está mais viva na memória. E, finalmente, talvez também por que não havia sido feita uma pesquisa documental e de imagens mais ampla referente ao período do Estado Novo, investigando inclusive acervos no Exterior.
Seu filme é rico nos paralelos possíveis entre o teatro político do Estado Novo e o que observamos no Brasil nos últimos anos.
Por mais tentador que seja, eu hesitaria em traçar paralelos entre momentos tão diversos e fatos ocorridos em contextos políticos também tão diferentes. Creio que é preciso ter cautela ao traçar paralelos contra situações muitas vezes apenas aparentemente semelhantes. Ao mesmo tempo, é impossível negar certas recorrências. As marés vão e vêm, mas podem ser afetadas por intervenções humanas. É o que deveria ocorrer. Todo nosso esforço é para tentar compreender fatos históricos, evitando deliberadamente assumir a posição de quem pretende ensinar ou formular conceitos definitivos sobre o que quer que seja.
É bastante emblemático o jogo duplo que o governo Vargas fez alternando simpatia tanto com a Alemanha nazista quanto com o governo dos EUA, um exemplo de oportunismo e pragmatismo. Isso pode ser visto como exemplo da astúcia política de Vargas?
Astúcia e habilidade política, conforme o ângulo em que for feita a avaliação. Vargas teria tirado o melhor partido possível, enquanto foi possível, da polarização política internacional. Obteve, dessa maneira, vantagens concretas para o Brasil. E mantinha no governo vozes influentes em favor tanto da aproximação com a Alemanha quanto com os Estados Unidos.
O culto popular a Vargas transcendia o partido político que ele representava, até mesmo ideologias. É um caso único na história política do Brasil?
Creio que a idolatria a Vargas é, sim, um caso único na história do Brasil. Em especial, lembrando que essa idolatria se consolidou no período ditatorial do Estado Novo.
A ditadura Vargas tem aspectos curiosos, por vezes contraditórios. Tinha perfil autocrático, perseguia e torturava inimigos e impôs a censura à imprensa. E, ao mesmo tempo, atraiu para seus quadros figuras progressistas de esquerda como Carlos Drummond de Andrade e também rompeu com integralistas de viés fascista. É um exemplo do pragmatismo de Vargas para realizar os projetos que ele via como fundamentais?
É preciso fazer um esforço para entender a convivência, aparentemente harmônica, entre alguns intelectuais, como Drummond, e o Estado Novo. O próprio Drummond, como é mencionado na narração do filme, dizia que os deveres da amizade (no caso com Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde) se sobrepunham às diferenças de posição política. A imagem que ocorre é, não obstante os que se mantiveram à parte e críticos em relação a Vargas e ao Estado Novo, que houve uma, entre várias outras, grande conciliação nacional.
Imagens do Estado Novo 1937-45
De Eduardo Escorel
Documentário, Brasil, 2016, 227 min.
Estreia nesta quinta (19), no Espaço Itaú 8. Exibição em duas partes, uma a cada dia, sempre às 19h20min.
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