Segundo o musicólogo Zuza Homem de Mello, Paulo Moura (1932 - 2010) pode ser considerado o "representante máximo da música instrumental brasileira". Filho de mestre de banda, o clarinetista, saxofonista, compositor e regente paulista destacou-se como um instrumentista capaz de transitar com leveza pelo popular, pelo jazz e pela música erudita. Em 2008, o cineasta Eduardo Escorel foi chamado por Moura e pela mulher para fazer um filme sobre a trajetória do músico - mas a morte do artista mudou os rumos do projeto. Montador de documentários clássicos como Cabra Marcado para Morrer (1985), de Eduardo Coutinho, e Santiago (2007), de João Moreira Salles, Escorel seguiu adiante e debruçou-se em mais de 80 horas de gravações.
O resultado é Paulo Moura - Alma Brasileira, documentário em cartaz na Capital no qual o próprio músico conta sua história por meio de fragmentos de depoimentos e de 25 músicas, esboçando o perfil de um solista que tocava o choro Espinha de Bacalhau e um concerto de Mozart com a mesma fluência.
Zero Hora - Por que você decidiu contar a história de Paulo Moura de forma não cronológica, lacunar, a partir de clipes musicais e praticamente sem entrevistas?
Eduardo Escorel - Nem sempre nossas escolhas são totalmente racionais, às vezes só em retrospecto dá para entender. Minha primeira reação depois da morte dele foi desistir do projeto. Não queria fazer o filme sob o impacto da morte. Mas acabei fazendo por causa de apelos que me fizeram, dizendo que mais do que nunca eu tinha que fazer esse filme. Decidi continuar, mesmo sem saber aonde é que iria ir, honestamente. Fiz umas gravações, e uma delas foi uma revelação: a sequência no estúdio-escritório do Paulo dias depois da morte, mostrando como ele deixou aquele espaço íntimo e de trabalho. Revendo esse plano depois, pensei que esse caminho dos vestígios poderia ser uma boa solução. À medida que fomos encontrando uma grande quantidade de imagens dele fui me animando. Queria reproduzir a ideia da memória, que é fragmentária, feita de pedaços de lembranças que se unem por mecanismos de livre associação, que não segue uma ordem cronológica. Procurei assegurar essa espontaneidade de quem abre uma pasta de fotos antigas e não sabe o que vai encontrar.
ZH - O filme acaba reproduzindo de certa maneira a própria fala do Paulo, que costumava ser titubeante e reticente.
Escorel - Pois é, o Paulo falava três palavras e depois eram reticências (risos). Mas há um depoimento precioso dele para o documentário do Mika Kaurismäki (cineasta finlandês), que eu reproduzo no meu filme, em que ele aparece inusualmente loquaz. O Paulo está na casa dele, talvez tenha se sentido confortável para falar sobre o passado. Esse depoimento para o Brasileirinho (documentário de 2002 sobre o chorinho) continua inédito. Imaginei que houvesse sobras do filme, mas não que tivesse uma fala tão longa assim.
ZH - Por que você não entrevistou outros músicos e amigos de Paulo?
Escorel - Acho que esse formato de doc musical com entrevistas está esgotado. No meu filme, você não vê nenhuma daquelas figuras que aparecem em todos os documentários, como Gilberto Gil. O Deixa que Eu Falo (documentário de 2007), que eu fiz sobre o Leon Hirszman (cineasta), tem o mesmo formato, só o Leon falando.
ZH - No filme, você reclama que não teve autorização para usar certas imagens de arquivo, nem de mostrar o sarau de despedida do Paulo na cama do hospital.
Escorel - Fiz uma gravação na Clínica São Vicente, já para o filme, a pedido da Halina Grynberg (viúva de Paulo Moura). Ele estava muito frágil, tocando Doce de Coco com Wagner Tiso, cercado por amigos. Mas eu precisava da autorização de muitas pessoas para mostrar essa sequência, porque ele está muito debilitado, tocando mal, e muitos acharam que ele não devia aparecer assim. Eu vejo de forma diferente, como uma despedida dele para os amigos. Houve pessoas que não autorizaram por causa disso, outras porque pediram direitos de imagem acima do mercado, outras porque alegaram que iriam fazer alguma produção com o material, outras porque nunca conseguiram autorização antes e não queriam então que eu conseguisse... Os poderes maléficos estão soltos por aí.
ZH - Cabra Marcado para Morrer e Santiago também são documentários que quase não foram realizados por causa das dificuldades encontradas. Você parece atrair projetos desse tipo, não é?
Escorel - Há documentaristas que se impõem restrições propositalmente para que a forma do filme nasça dessa dificuldade. Não é o meu caso. Por outro lado, o doc tem esse elemento de que a gente não consegue controlar tudo. O imponderável tem uma importância fundamental nos documentários. Esses filmes me deram muito a sensação de que eu estava à beira do abismo, prestes a cair. Achei em muitos momentos que não iria conseguir fazer o filme. Falava para amigos que iria fazer um filme sobre a impossibilidade de fazer um filme sobre o Paulo Moura. São projetos que lidam com a iminência do fracasso. Escrevi um artigo para um livro do Eduardo Coutinho em que lembro que só ele e mais uns dois amigos achavam que ele terminaria um dia o Cabra Marcado. Estou mais aliviado do que satisfeito em ter terminado o filme.