Criador e editor de uma das mais prestigiosas publicações da imprensa brasileira, João Moreira Salles, da Revista Piauí, foi o primeiro convidado do ano no ciclo de palestras Em Pauta ZH – Debates sobre Jornalismo, na noite desta terça-feira, na sede do Grupo RBS, em Porto Alegre. Para uma plateia formada por colaboradores da empresa e convidados, o documentarista carioca de 54 anos, diretor de filmes como Notícias de uma Guerra Particular (1999) e Santiago (2006), falou sobre os bastidores da redação e seus quase 11 anos de produção de um jornalismo de narrativa longa e profunda.
No início da conversa mediada pela jornalista e colunista de ZH Cláudia Laitano, Salles relembrou a fundação da Piauí. A revista surgiu para suprir uma necessidade pessoal que o editor precisava saciar em publicações estrangeiras. Leitor fiel da americana The New Yorker desde os 19 anos, ele era admirador dos textos de fôlego de Lillian Ross e Joseph Mitchell.
– Eu sou um documentarista acidental. O cinema não é central na minha vida, nunca foi uma vocação. Sempre estive muito mais próximo da escrita do que da imagem. Eu, como leitor brasileiro, me sentia órfão de alguma coisa que eu queria ler em português e só podia ler em inglês. A Piauí é um pouco isso: eu me aproximando daquilo que me formou – contou Salles.
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Como não havia, na imprensa nacional da época, nada parecido com o que Salles e seus parceiros fundadores – os jornalistas Mario Sergio Conti, Dorrit Harazim e Marcos Sá Corrêa – se propunham a fazer, o projeto partiu de duas grandes dúvidas: uma revista com textos tão longos encontraria leitores interessados em lê-los e, antes mesmo disso, jornalistas capazes de produzi-los?
– A gente aprendeu na marra. As primeiras Piauís não são boas – admitiu.
Com o tempo, os repórteres introjetaram o hábito de descrever o que não é dito, não botar o lide (introdução do texto jornalístico, reunindo as informações principais) no primeiro parágrafo. Criou-se o "sotaque" da publicação: descrever a roupa do entrevistado, o modo como ele fala. O editor falou da rotina da pequena redação – um grupo de pouco mais de 10 pessoas –, começando pela concepção das pautas até o texto final, resultado de um exaustivo processo de edição, iniciado antes da escrita. É costume que os repórteres contem aos editores como imaginam que aquela história em que estão trabalhando deva ser contada – qual a cena de abertura, como evoluir a partir dali.
– É muito mais uma obra de arquitetura do que de engenharia. Você precisa de uma ponte que te leve de um lugar a outro, mas às vezes o corredor é terrivelmente chato. Como resolver isso?
Salles explicou que concebeu a redação da Piauí como um ambiente fluido, sem a costumeira divisão por editorias, que têm espaços predeterminados para diferentes assuntos.
– A gente não tem que preservar latifúndios, a cada número, para esporte ou economia. Se a reportagem sobre educação tem 90 mil toques, não está expulsando ninguém, não tem nenhuma editoria sendo invadida por um texto imperialista – brincou, divertindo o público.
Outra marca da Piauí preservada desde a largada é a ausência de opinião. Trata-se de uma revista que se sustenta na apuração do jornalista in loco – a guerra na Síria, por exemplo, será abordada apenas se um repórter for até lá para ter o que relatar. À parte essas características incomuns, Salles diz que a revista é convencional no sentido de que nasceu para ser física, de papel, quase totalmente alheia à revolução online que sacode e desafia os veículos de comunicação. A Piauí reflete, confessou o documentarista, muito dele próprio, que é avesso a invenções digitais e redes sociais.
– É uma redação de pessoas dedicadas ao texto escrito. E eu sei que isso vai absolutamente na contramão da sensatez – reconheceu.
Ao ser questionado sobre a capacidade da publicação de surpreender o leitor com histórias inusitadas, cavoucadas nos confins do país ou no Exterior, Salles resgatou uma experiência vivida com um de seus ídolos. Ao entrevistar o jogador de futebol Domingos da Guia para um documentário, questionou-o sobre sua capacidade surpreendente de roubar a bola dos adversários. O atleta respondeu com certo desdém: "Se eu chego antes é cedo, se eu chego depois é tarde. Eu chego na hora certa".
– A Piauí é o contrário do Domingos. Nossa periodicidade é de 30 dias, não podemos concorrer com a notícia quente. Ou a gente chega antes, ou a gente chega depois. A gente nunca chega na hora – disse Salles, citando exemplos de reportagens em que os autores levaram meses entre a coleta das informações e o ponto final, tempo que lhes possibilitou colher histórias saborosas pelo caminho.
Ao fazer uma avaliação da trajetória cumprida até aqui, Salles afirmou que a revista tem méritos, não sendo medíocre em suas ambições, e também fracassos, como o de falhar na cobertura da área de cultura. Em uma época de crise, em que as redações encolhem e os investimentos minguam, o editor destacou que a Piauí vem conseguindo se manter firme, ainda que considere que não seja viável economicamente.
– Chegamos perto de 100 mil leitores. Num país como o Brasil, isso não me deixa contente, mas também não me deixa infeliz. Nossos assinantes são muito fiéis, nossa carteira não diminui, ela cresce. Durante a crise todo mundo foi afetado, e nós não fomos.
Depoimentos:
Andiara Petterle, vice-presidente de Jornais e Mídias Digitais do Grupo RBS:
"O João traz um olhar muito interessante sobre o jornalismo com um resgate importante da sua essência: apuração profissional e qualificada, mais olhar sobre os fatos e menos opinião e a importância da riqueza da narrativa. A importância do jornalismo profissional para a sobrevivência de uma sociedade saudável é uma das maiores preocupações trazidas pelo João. A busca por um modelo que garanta a independência da imprensa é chave para a civilidade. Foi um dos encontros mais interessantes e ricos que tivemos no Em Pauta. O caso de sucesso da Piauí é animador num momento em que se busca voltar à essência do bom jornalismo."
Anderson Guerreiro, 24 anos, estudante de Jornalismo da Unisinos:
"Me empolgou muito, foi bem interessante. Gosto muito de escrever, sou apaixonado pela revista, tem reportagens muito aprofundadas. Tenho todas as edições em casa."
Artur Colombo, 21 anos, estudante de Jornalismo da Unisinos:
"Achei sensacional. Esse jornalismo menos convencional é o que eu mais gosto neles. Eles têm tempo para apurar o assunto."