O primeiro volume da biografia de Getúlio Vargas escrita por Lira Neto, lançado em 2012, funcionava como uma prévia do Vargas mais conhecido pela historiografia brasileira, encerrando-se no momento em que o biografado era investido como chefe do Governo Provisório instituído pela vitoriosa Revolução de 30. Agora, Lira Neto retorna a Getúlio para o segundo volume da biografia, planejada para ter três volumes. Getúlio (1930-1945): Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo apresenta os primeiros 15 anos de Vargas no poder, de líder da revolução vencedora a governante constitucional com poderes discricionários e, finalmente, como ditador de fato no Estado Novo. O livro está chegando agora às livrarias. Por e-mail, Lira Neto concedeu a seguinte entrevista:
>> Leia trecho do segundo volume da biografia de Getúlio Vargas
Zero Hora - O senhor comenta no prefácio do livro que este volume aborda aquele que é provavelmente o mais estudado e documentado período da vida e da ação política de Getúlio. Que dificuldades encontrou para comprimir tanto material em um volume?
Lira Neto - De fato, o período entre 1930 e 1945 abrange alguns dos episódios mais estudados da história brasileira no século 20: a revolta paulista de 1932, o levante comunista de 1935, a instauração do Estado Novo em 1937, a participação brasileira na II Guerra após o embarque da FEB em 1943. Todos esses fatos já possuem uma ampla e sólida bibliografia específica. Não tive, portanto, obviamente, a pretensão de reescrevê-los sob novo enfoque e perspectiva. O desafio a que me propus foi o de articular tais episódios com a trajetória pessoal do biografado, para compreender de que modo esses fatos impactaram as ações e o pensamento de Getúlio, assim como tentei entender e elucidar o quanto as circunstâncias da esfera privada do ex-presidente influenciaram suas atitudes perante tais acontecimentos.
ZH - Como ler em sequência a hesitação de Getúlio em assumir o papel de líder da revolução de 1930 (que o senhor apresenta no fim do primeiro volume) e suas claras tentativas ao longo dos primeiros anos de governo de garantir que sua administração não precisasse se sujeitar às alianças do jogo democrático? Getúlio queria que as coisas fosse feitas sempre de seu jeito?
Lira Neto - O primeiro volume permite ao leitor mais alheio à historiografia gaúcha tomar conhecimento dos anos de formação e das matrizes ideológicas de Getúlio: o darwinismo social que abraçou nos tempos de estudante, a filiação inicial ao castilhismo-borgismo, a sua entrada no cenário político a serviço de uma tradição de governos unipessoais que desdenhavam o Legislativo e rejeitavam a ideia de representatividade democrática. Esse contexto preliminar é fundamental para iluminar nossa compreensão a respeito do comportamento de Getúlio após sua chegada ao poder federal, em 1930. De 1930 a 1945, com exceção do breve interlúdio entre julho de 1934 e maio de 1936, Getúlio governou com poderes discricionários, com o parlamento fechado, impondo censura à imprensa. Político gerado no ambiente histórico do borgismo, ele não via nenhum constrangimento ético ou moral em se autointitular ditador, conforme está exposto desde a epígrafe do livro. É preciso lembrar que, naquele momento em que o capitalismo e a democracia liberal estavam em xeque, com os EUA afundados na Grande Depressão, a fórmula de um Estado forte, governado por um déspota carismático e esclarecido, era entendida como uma espécie de panaceia para boa parte do mundo ocidental.
ZH - Assim como no primeiro volume, neste segundo episódio o senhor parece ter se fascinado também com o elenco de "coadjuvantes" que o cercava, como Flores da Cunha, Maurício Cardoso e Oswaldo Aranha, que ocupam espaço privilegiado no livro. O senhor concorda com essa avaliação?
Lira Neto - Nenhum homem é uma ilha, já dizia o poeta John Donne. Uma biografia, necessariamente, ao mapear a trajetória de uma determinada existência, também traçará o roteiro de outros personagens relacionados diretamente a esta história. No caso de Getúlio, a constelação de "coadjuvantes" é extremamente fascinante e irresistível. Impossível não ceder ao apelo das tramas aparentemente paralelas, mas que na verdade convergem para um mesmo ponto. Além dos nomes que você citou, eu acrescentaria ainda as figuras de João Neves da Fontoura, Batista Lusardo, Borges de Medeiros e a própria Alzira Vargas como exemplos evidentes disso.
ZH - Mais de um episódio no livro remete a questões de hoje. Há descontentamento nas ruas, críticas às alianças necessárias para a "governabilidade", uma classe política acossada por clamor popular, propostas de constituinte apresentadas para acalmar os ânimos. A sociedade brasileira reencena seus próprios dramas?
Lira Neto - Eu já havia enviado os originais à Companhia das Letras quando explodiram os protestos de junho. Surpreendi-me então, com a atualidade de muitas cenas que haviam sido narradas no livro. As manifestações de repúdio à política, a rejeição aos partidos e às formas tradicionais de representação, a cooptação da indignação coletiva e difusa, tudo isso foi ingrediente central para a fórmula que gerou, pelo mundo afora, a ascensão dos autoritarismos e totalitarismos nos anos 30 e 40. É claro que foi bonito ver, recentemente, multidões ocuparem as ruas do país. Mas existia ali algo que me incomodava e continua incomodando: a satanização da política e a recusa à ideia de representatividade democrática. Quando tais bandeiras são desfraldadas, a tentação autoritária fica à espreita.
ZH - Getúlio se bate não apenas contra adversários políticos mas contra estripulias protagonizadas pelos demais integrantes do clã dos Vargas (em especial o violento e destemperado Benjamin). Getúlio via a si próprio como uma espécie de político "moderno", mesmo atolado nas política caudilhesca exercida por sua família?
Lira Neto - O sangue alvorotado dos irmãos Vargas é evidenciado desde o primeiro volume, com as peripécias criminosas de Viriato, seja em Ouro Preto, seja em São Borja. No segundo tomo, Bejo já começa a assumir o papel do mano problemático. Esta é mais uma das fascinantes contradições do getulismo, o embate entre uma ação política e social que modernizou o Brasil e os muitos entreveros familiares de que Getúlio foi vítima, na maioria das vezes gerados pela prepotência do mando mais provinciano e retrógrado, sustentados pelo argumento da bala, da faca, do cacete, do sangue inimigo derramado. Em tempo: a invasão de Santo Tomé, em 1933, objeto de um livro pioneiro do pesquisador gaúcho Iberê Athayde Teixeira, está bem dissecada em Getúlio (1930-1945): Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo. Tive acesso a documentos diplomáticos reservados, que estavam sob a guarda do Itamaraty e do Ministério do Exterior da Argentina. Iberê me forneceu excelentes pistas iniciais. Mantivemos uma profícua interlocução e, ao final, mandei o resultado de minha apuração para ele, que promete agora reeditar o seu livro sobre o assunto, enriquecido com essas novas informações de bastidores.
GETÚLIO (1930 - 1945): DO GOVERNO PROVISÓRIO À DITADURA DO ESTADO NOVO
De Lira Neto
Companhia das Letras, 600 páginas, R$ 52,50
Segundo volume da biografia de Vargas escrita por Lira Neto, aborda seus 15 anos de governo, a maior parte deles exercendo poderes ditatoriais.