Projeto idealizado pelo diretor Ruy Guerra no correr de duas décadas, chega aos cinemas nesta quinta-feira (19) adaptação do livro Quase Memória, um dos mais aclamados livros de Carlos Heitor Cony — para muitos sua obra-prima _, jornalista e escritor que morreu em janeiro, aos 91 anos. Moçambicano que fez história no cinema brasileiro assinando obras referenciais como Os Fuzis (1964), prêmio de melhor direção no Festival de Berlim, Guerra, 86 anos, não apresentava um longa-metragem desde O Veneno da Madrugada (2005), versão do livro homônimo de Gabriel García Márquez.
Quase Memória ganhou de Guerra uma releitura muito particular, resultante tanto da sua proposta autoral quanto das adequações orçamentárias exigidas para erguer o projeto, com as consequentes adaptações do roteiro. Ao seu lado, Guerra tem um ator com o estofo exigido pela ambiciosa proposta de dar à narrativa uma roupagem teatral, na cenografia e no tom da dramaturgia: Tony Ramos.
Ambientado em 1995, o livro de Cony é costurado por uma engenhosa combinação de relato biográfico e ficção, a partir das lembranças que o personagem Carlos tem de seu pai, despertadas por um misterioso pacote que um dia recebe. Esse pai, morto 10 anos antes, é evocado como um herói farsesco de dimensões épicas, protagonista e testemunha de grandes feitos e aventuras, reais e imaginárias, no Rio das primeiras décadas do século 20.
Guerra, autor do roteiro com Bruno Laet e Diogo Oliveira, reconstrói a narrativa colocando em cena dois Carlos: na versão jovem idealista no convulsionado Brasil de 1968 (vivido por Charles Fricks) e já transformado em velho que amarga a solidão enquanto o país, em 1994, chora a morte de Ayrton Senna. E do conflito entre presente e passado emerge a figura tão exuberante quanto fugidia desse pai (João Miguel).
— Conheci o livro do Cony quando do seu lançamento — diz Tony Ramos a Zero Hora. — Foi um sucesso retumbante e me emocionou muito. Propõe uma viagem no próprio tempo, faz buscar memórias de sua própria vida. (o filme) É uma livre adaptação respeitando a obra. O que a memória faz conosco? O que é a quase memória? O que é perder a memória? Várias indagações passaram por mim para aceitar esse texto deslumbrante. Bastou uma reunião minha com o Ruy, que me explicou o roteiro que finalizava. Depois, fizemos uma leitura e eu disse: "Vamos juntos nessa viagem, estou muito emocionado em trabalhar contigo".
Tony estreou no cinema em 1968, com O Pequeno Mundo de Marcos, de Geraldo Vietri, mas consagrou-se como ator de TV. Apesar da presença sazonal no cinema, nos anos 2000, entre outros trabalhos, o ator tem nos créditos sucessos de bilheteria como as comédias Se eu Fosse Você 1 e 2 e a elogiada performance na cinebiografia Getúlio.
— Não filmo tão seguidamente porque sou atraído por projetos que me fascinam. Às vezes, bate o convite para um filme e estou no meio da gravação de uma novela, ou estou em cena no teatro — explica Tony. — O trabalho em novela requer uma disponibilidade muito grande. Grava-se de segunda a sábado. Telenovela, a gente brinca no nosso meio, é a grande estiva. Demanda tempo, dedicação e muita disciplina.
Na avaliação de Tony Ramos, em que pese as hoje múltiplas opções de entretenimento, a telenovela tradicional segue com seu espaço preservado na preferência popular:
— Ouço há pelo menos 40 anos que a telenovela está em desuso. A partir dos momentos que as multiplataformas foram acontecendo também cantaram: "Acabou". Na verdade, não acabou nem nos Estados Unidos. Claro que muda o jeito de ver televisão, a forma de ver televisão. Mas, apesar de todas as opções, é a TV aberta que continua imperando. Porque não se cobra, é democrático. E, curiosamente, o grande público gosta de assistir na hora em que ela está sendo exibida. Só porque está no streaming não quer dizer que é bom. Se você pegar (a série) Breaking Bad, um grande sucesso, é uma novela. Um professor, doente terminal, descobre uma fórmula de ganhar dinheiro e deixar alguma coisa para a família, daí vira um grande traficante e blá, blá, blá. Dramaturgia boa sempre tem conflito, busca atrair e manter a fidelidade do espectador. Isso pode ser diário, por streaming, uma vez por semana, para se ver tudo de uma vez.
Aos 69 anos, Tony Ramos comenta o processo de longevidade, troca de experiência e renovação em seu ofício:
— Acho que vou ter condições de, aos 80 anos, fazer o bisavô, o vovô, com humor, sem humor, dramático ou trágico. Vejo com bons olhos a renovação. O que me preocupa é o sucesso imediato, a pessoa se iludir com essas histórias de Instagram e não sei mais o quê. Não tenho rede social, não falo da minha vida pessoal. O que dá prestígio é a longevidade do seu trabalho, o respeito ao espectador e a escolha de bons papéis.
Quase Memória
De Ruy Guerra.
Comédia dramática, Brasil, 2015, 95 min, 12 anos.
Estreia nos cinemas quinta-feira, dia 19 de abril.