Costuma-se dizer que o cinema gaúcho teve fases, ou ciclos – o "da bombacha", nos anos 1960 e 70; os filmes modernos de Antônio Carlos Textor e a urbanidade de Odilon Lopes, logo em seguida; a geração Casa de Cinema, a partir dos 1980.
De algum modo, todas essas vertentes lançadas anteriormente coexistiram entre as décadas de 1990 e 2000, em longas históricos (Anahy de las Misiones, Netto Perde Sua Alma), curtas-metragens contemporâneos de construção narrativa sofisticada (Três Minutos, Cinco Naipes) e alguns outros desdobramentos dessa produção (documentários, animações).
A geração que despontou em meio a essa diversificação – e, em certo momento, a protagonizou – é até hoje conhecida, sobretudo, pelos curtas. Foi a última geração a surgir antes da popularização do vídeo digital, quando realizar um longa-metragem ainda era uma tarefa hercúlea, quase um ponto de culminância de uma carreira que havia começado bem antes.
Fabiano de Souza e Gilson Vargas só estrearam em longa mais de uma década após seus primeiros curtas. Gustavo Spolidoro foi o primeiro, entre eles, a se aventurar em um filme com mais de uma hora de duração, com Ainda Orangotangos, rodado no finzinho de 2006, exibido em festivais em 2007 e lançado no circuito em 2008 – e que terá sessão comemorativa de 10 anos às 20h desta quinta-feira (30), na Cinemateca Capitólio, em Porto Alegre.
Curiosamente, Ainda Orangotangos só pôde ser realizado com uma câmera digital, dado que é composto de um único plano, com pouco mais de 80 minutos no total.
O tour de force chamou a atenção à época, midiatizando o projeto desde as filmagens, devidamente acompanhadas pela imprensa (ZH publicou um mapa do caminho percorrido pela câmera entre a Estação Farrapos da Trensurb e a Redenção, área central da capital gaúcha, com uma cronologia dos acontecimentos, das 19h48min às 20h57min).
Cercado de expectativas, o filme não colheu as melhores críticas – diferentemente do longa seguinte de Spolidoro, Morro do Céu (2009), que por sua contemporaneidade constitui uma espécie de prenúncio da ascensão da geração seguinte, responsável por títulos potentes como Castanha (de Davi Pretto, 2014) e Beira-Mar (Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, 2015).
Dez anos depois, o olhar distanciado para Ainda Orangotangos permite entender melhor sua dramaturgia escorregadia, que passeia por episódios da vida cotidiana sem aprofundá-los porque se pretende um painel dessa vida. Composto a partir de situações-limite (o que não deixa de ser contraditório na medida em que o cotidiano só raramente é feito dessas situações), esse painel revela algum primitivismo, mantendo o espírito do extraordinário livro de contos homônimo de Paulo Scott, que com um antilirismo refletia sobre obsessões, perversões e outras evidências do lado obscuro das pessoas.
Alguns dos bons momentos do filme são aqueles em que as relações de causa e consequência justificam os atos a evidenciar esse lado obscuro (a discussão entre o Papai Noel e as meninas no ônibus, por exemplo). Mas, mais do que isso, o importante em Ainda Orangotangos é o olhar geral que ele traz, escancarando um certo estado de coisas. Afinal, ao longo de um passeio pela cidade, encontram-se várias situações-limite, que desvelam que há algo por trás da tranquilidade sugerida pelas aparências.
Hoje nem mesmo as aparências sugerem tranquilidade, o que permite pensar em Ainda Orangotangos, no mínimo, como um dos filmes que anteciparam a agitação social, quase conflagração, que se estabeleceria nos anos seguintes, com episódios como o Junho de 2013, a polarização política, a violência desenfreada e a virulência dos debates estabelecidos na esfera pública.
Também esta é uma prerrogativa do cinema: antecipar certas sensações que já podem existir, porém, ainda não estão sensíveis e, por isso, nem sempre são percebidas no calor da hora.
A sessão da noite desta quinta, no Capitólio, é especialmente interessante por permitir esse debate que, 10 anos atrás, não parecia fazer tanto sentido.
Algumas curiosidades sobre o projeto
Único plano
Primeiro longa de Spolidoro, Ainda Orangotangos (2007) não foi a sua primeira experiência com o plano-sequência: os curtas Velinhas (1998) e Outros (2000) também usaram o recurso.
Seis dias
O filme foi rodado entre a Estação Farrapos da Trensurb e os arredores do Parque da Redenção, em um percurso de 15 quilômetros percorrido ao longo de seis dias de dezembro de 2006, das 19h48min às 20h57min. Entre as seis, a tomada registrada no segundo dia foi considerada a melhor. As demais foram descartadas.
Trajeto
A trama se inicia dentro de um trem, passa pelo Mercado Público, por um ônibus que vai até a Avenida Venâncio Aires, adentra um apartamento, depois uma festa na Avenida João Pessoa, para terminar dentro de um carro.
Multidão
Cerca de cem figurantes, 15 atores principais e uma equipe técnica de mais de 50 pessoas participaram das filmagens, que ainda mobilizaram policiais e agentes de trânsito.