Artista visual e escritor reconhecido em ambas as atividades, Nuno Ramos é uma usina de ideias. Formado em Filosofia, criou obras em diferentes suportes, como pintura, escultura e instalação. Como escritor, lançou oito livros, sendo o mais recente Adeus, Cavalo (Iluminuras), no qual um ator reflete sobre o ofício da criação. Ó foi escolhido o livro do ano de 2009 pelo Prêmio Portugal Telecom (hoje Prêmio Oceanos). Em 2012, levou na categoria poesia com Junco. Ramos recebeu ZH na preparação para a performance A Gente se Vê por Aqui, que estreou nacionalmente em Porto Alegre no domingo passado – durante 24 horas, dois atores recriaram no Teatro Renascença diálogos ouvidos na programação da TV Globo. Nesta entrevista, ele fala sobre as polêmicas no mundo da arte e a qualidade do debate público no Brasil atual.
Desde a exposição Queermuseu, no Santander Cultural, houve muitas polêmicas relacionadas à arte no Brasil. Como você percebe o clima para a criação artística no país?
É difícil saber de onde isso está vindo, qual é a força exata disso, o quanto é uma manipulação, se é pouca gente e parece mais. O que eu sei é que a primeira linha divisória vem das instituições. Nesse sentido, o Santander foi a grande vergonha, porque nunca poderia ter feito o que fez (antecipar o encerramento da exposição devido a protestos). Se a instituição banca, como o MAM bancou (após a polêmica envolvendo performance de um artista nu que foi tocado no pé por uma criança no Museu de Arte Moderna de São Paulo), há uma primeira linha divisória. A instituição não pode voltar atrás, fraquejar. O Santander é o grande exemplo, mas o fato de o Crivella (Marcelo Crivella, prefeito do Rio) meter o bedelho no MAR (Museu de Arte do Rio) para impedir que a exposição (Queermuseu) fosse para lá é uma vergonha igual. Ou o fato de o Doria (João Doria, prefeito de São Paulo) se manifestar. Isso é papel de uma área da administração, que é a da cultura, que tem parâmetros próprios. Não é o prefeito que vai dizer o que pode ou não pode fazer em um museu. Isso tudo me parece serem atos de censura mesmo, um fenômeno novo no país, que está vindo de todos os lados. Essas coisas são um pouco epidêmicas, como a violência nos EUA: parece que há uma epidemia de censura. Mas eu distingo isso da vaia. A vaia é do jogo. Claro que jogar objetos não pode, pois vira uma coisa física, mas a vaia é uma tensão da qual o artista tem que dar conta. Agora, o teatro que me convida não pode cancelar minha performance porque tem 800 pessoas na rua dizendo que eu sou isso ou aquilo. São coisas diferentes.
Alguns analistas veem essa caça às bruxas na arte como uma forma de desviar a atenção dos verdadeiros problemas do governo, como a corrupção.
Não dá para não ver isso. Havia no impeachment uma pauta anticorrupção baseada no que se flagrou do PT. Aos dois minutos do primeiro tempo do novo governo, tudo o que era criticado do lado de lá apareceu do lado de cá, com mais evidência ainda. É hipócrita fazer passeata com a camisa da Seleção antes e não agora. Parece que há uma nova pauta, diversionista, para não encarar essa hipocrisia. Afinal, não era a corrupção que estavam querendo derrubar, era o próprio PT. A pauta de costumes está sendo atacada como um modo de poupar o absurdo que é o governo Temer. Independentemente disso, a potência de representação política no mundo inteiro se fragilizou loucamente. E o declínio do PT foi o sintoma maior disso, uma vez que era um partido com potência de representação forte, talvez especial pela relação com os movimentos populares. Mas o mesmo aconteceu com o PSDB, que morreu junto, nem ele sabe mais o que representa. E o PMDB, que só representa a ele mesmo, continua onde sempre esteve, nessa faixa de compra de patrimônio público, compra de representação e tudo. No Exterior, é a mesma coisa: a potência de representação do mundo político entrou em colapso. Ao perderem a conexão ou a ilusão ideológica de conexão com a política, os indivíduos se tornaram ativos, e nessa atividade você pode se aproximar do pior da história moderna, que é o fascismo. A repressão de esquerda era uma repressão pelo Estado; a repressão fascista passa muito pelos indivíduos. Tenho mais medo disso do que da corrupção política. Não tenho tanto medo de deputado corrupto. Tenho medo do demônio que possa nascer no meu vizinho, em um amigo que não vejo há muito tempo ou em um primo que diga: “Artista é tudo vagabundo”. É isso que me apavora mais no que estamos vivendo hoje.
Por que os artistas e a arte se tornaram alvo?
Tenho dificuldade de entender. Existe, para alguns, uma identificação da arte e dos artistas com a classe dominante no sentido de que seriam caras que viveriam bem, ricos, com costumes liberais, não teriam patrão, seriam poupados das agruras do capitalismo. Então, acho que tem certo ressentimento em relação a essa caricatura, que não é verdadeira. Artista trabalha muito, tem relações de trabalho violentas. Talvez haja também uma ideia de que, se passar o controle sobre o caso de exceção, que é a arte, aí passa sobre tudo, tipo boi de piranha. Qual é a relevância pública de uma performance no MAM? Nenhuma. Jamais estariam falando dessa performance se não fosse essa polêmica. Se eles vão atrás disso para proibir, deve ser porque, se passarem esse caso, todo o resto eles também podem passar. Se proíbem o artista de ficar nu, então todas as outras pautas também passam, porque pegaram o caso exemplar, que é a arte. Não entendo por que foram pegar uma exposição em um museu de Porto Alegre, que não teria relevância nacional, e transformaram isso em uma pauta nacional. Acho que não são tão burros assim. Estão jogando fumaça para que não sejam cobrados nas pautas reais que estão engolindo, como a corrupção. Outro ponto é que a migração para a pauta dos costumes faz parte dessa espécie de privatização. Uma parte da vida privada vem ao Santander Cultural e diz que a outra parte da vida privada não pode ver isso. É uma força política, mas eles fingem que não são uma força política.
Lamento que a pergunta “A exposição Queermuseu era boa?” nunca pôde ser feita
NUNO RAMOS
Qual é a sua sensação como artista? Preocupa-se se uma obra pode gerar polêmica?
Não, de jeito algum. Não acho que o criador seja uma planta frágil, uma orquídea que precisa de sombra. Estamos no burburinho, que é onde temos de estar mesmo. Temos de reagir a isso. Lamento que a pergunta “A exposição Queermuseu era boa?” nunca pôde ser feita porque o único assunto de que estamos tratando é se a exposição pode existir. É óbvio que pode existir. Vamos falar se é boa, se é legal, se as obras são ricas ou bestas. Ninguém mais fala de arte, porque estamos em uma etapa anterior, que é sua possibilidade de existência. Isso é empobrecedor. O que os artistas têm de fazer? Têm de reagir na vida civil: participar, assinar, se pronunciar, dar a cara a bater. Mais do que isso, precisamos ser artistas melhores do que éramos. A arte tem de ficar boa. Precisamos poder voltar para esse lugar e acreditar nele. Fazer arte boa, forte, nos unir, criticar, conseguir um diálogo rico de novo. Para isso é que serve essa crise, no fundo.
Temos visto setores da sociedade veicularem a ideia de que a Lei Rouanet e qualquer outra forma de financiamento público à cultura seriam um problema para o Brasil, porque tirariam dinheiro de áreas prioritárias, como educação, saúde e segurança. Como você analisa essa posição?
É outro tema que estamos vivendo, o do bode expiatório. É lógico que não é a verba da Lei Rouanet que responde pelo fiasco educacional, da saúde pública ou de segurança. O Brasil tem 60 mil assassinatos por ano. Isso não tem nada a ver com a Lei Rouanet. A Lei Rouanet foi um avanço, porque passamos a ter instituições potentes. Não quero demonizar o mercado, mas ele responde a uma lógica; a instituição responde a outra. É importante que esse jogo institucional tenha força, e a Lei Rouanet deu força a ele. O CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), o Santander, o Itaú Cultural, todo mundo saiu mais poderoso. Eu devo demais à Lei Rouanet. Várias das exposições invendáveis, sem retorno econômico, pude fazer por causa dela. Claro que a lei não é perfeita. Acho que precisava de uma revisada já faz tempo. Muito projeto que recebeu dinheiro via Lei Rouanet era projeto do qual a própria dinâmica do mercado poderia dar conta. Mas não há país sem financiamento de parte da cultura. Tirando o cinema americano, que se paga, pois é uma indústria mesmo, o cinema em qualquer lugar do mundo é financiado. Não tem como não ser, pois é caro demais, o ingresso não paga. Isso não tem nada a ver com a crise de segurança, saúde, educação. Estamos vivendo um processo expiatório. Botar a culpa na arte faz parte da crise.
O imbecil que diz que a culpa é do artista está silenciando sobre a verdadeira violência.
NUNO RAMOS
Poderia aprofundar essa ideia da cultura como bode expiatório?
Quem encontra o culpado fica poupado daquilo que o culpado é acusado. O artista hoje está na posição do bode expiatório, de quem leva a culpa. A pedofilia é um caso seriíssimo no país. Quem lê meia hora sobre isso vai ver que uma proporção significativa da violência sexual contra a criança se dá na família. No caso do estupro, idem. É pura expiação afirmar que a culpa seria de uma moral que os artistas estariam violando por meio de um corpo que uma criança toca no dedo do pé. O imbecil que diz que a culpa é do artista está silenciando sobre a verdadeira violência.
Hoje, as torneiras do financiamento público à cultura estão secando. Seria possível encontrar formas alternativas de patrocínio?
Não acredito em choradeira. O Brasil está vivendo uma crise mesmo. Vamos ter que dar conta disso até o Estado poder voltar a investir. Dá para fazer arte com menos dinheiro. Odeio essa coisa de artista chorando. Mas haver menos recursos é uma coisa; outra coisa é haver controle sobre o imaginário, controle de um grupo sobre outro a respeito do que pode ou não pode. Isso é inaceitável. Se tiver menos dinheiro em um quadro no qual o controle não seja grande, a gente se vira. Agora, se tiver pouco dinheiro e isso for a principal forma de controle, aí não dá.
Você concorda com a percepção de uma decadência da qualidade do debate público, em parte consequente da dinâmica das redes sociais?
Concordo, mas por outro lado há novas vozes. Vozes de movimentos étnicos, LGBT, vozes ativas, que não havia antes e são bem-vindas, apesar de muitas vezes eu discordar de algumas posições. Às vezes me parece normal que uma minoria que foi muito vilipendiada historicamente tenha uma voz fechada em si mesma. Aí temos de falar com essa voz e fazer com que ela se abra. A gente se abre para essa voz também. A perda de não incluir essa voz é grande demais. É uma negociação que vale a pena.
Não compro esse discurso da equivalência (entre o radicalismo da direita e da esquerda)
NUNO RAMOS
Tanto a direita quanto a esquerda parecem ter um ímpeto de impor sua voz. Da parte da direita, vemos esses movimentos conservadores. Da parte da esquerda, houve uma atitude de cineastas que se retiraram de um festival por causa da exibição de filmes sobre o Plano Real e sobre Olavo de Carvalho.
Tem de haver acesso de todos os lados. Até onde eu entendo, a democracia só pode permitir a censura no caso extremo do extremo, como o nazismo. Fora isso, sou solidário com quem diverge de mim e é impedido de falar. Mas eu discordo: estão tentando construir a ideia de que está havendo um movimento radical de esquerda e de direita. Quem está radical é a direita. A esquerda tem isso, sim, mas existe um conteúdo rico vindo junto. Minha opinião sobre racismo mudou por conta disso. Eu falava em democracia racial e coloquei isso em questão. É rico. Mas não vejo riqueza alguma em dizer que aquela performance no MAM tem pedofilia. Eles (manifestantes contrários à performance) deram porrada em um funcionário do museu. Então, não compro esse discurso da equivalência (entre o radicalismo da direita e da esquerda). Não acho que toda argumentação que vem de movimentos LGBT, étnicos e tal seja equivalente ao MBL.
Qual a sua opinião sobre a questão do lugar de fala, quer dizer, o fato de se exigir que a pessoa pertença a um grupo para falar a respeito dele?
A arte tem um quê de falseamento do lugar de fala. A voz do artista é múltipla, acessa necessariamente outros lugares de fala. Claro que não é possível restringir a voz de um artista a um lugar de fala de classe. O marxismo teve que dar conta disso que parecia um paradoxo, já que o lugar de fala da esquerda era o lugar de classe, e muitas vezes o artista burguês era quem descrevia a classe operária de modo mais complexo. Balzac (escritor francês) deu conta da roda da sociedade quase inteira. E acho que isso não se explica pelo lugar de fala dele. A possibilidade de atravessar diversos lugares de fala é intrínseca à arte. Acusar alguém de não pertencer a um lugar de fala é impedir que o trabalho de arte exista. Você tem uma potência proteica (referente ao mito grego de Proteu) de se transformar em outra coisa como artista. Essa ilusão é o combustível essencial da arte. A capacidade proteica de mudar, de se metamorfosear, falar pelo outro, receber a voz de um velho. Agora, é claro que essa capacidade da arte tem seus limites. E outros lugares de fala, ao acessarem o lugar de fala desse artista, podem mostrar como ele é relativo, parcial, como falhou aqui e acertou ali. Não tenho nada contra a crítica.
As pesquisas sobre os hábitos culturais dos brasileiros costumam evidenciar que a população lê pouco, não vai muito a museus e a espetáculos. O que se pode fazer? Os artistas têm um papel para mudar isso?
É um processo grande, abstrato, que passa por educação, leitura. Há um monstro no país, que não é de agora, não tem a ver só com o governo Temer. Atravessou FHC e Lula. É uma violência crescente nos centros urbanos, uma dificuldade de acesso ao Estado. Isso vai criando os maus hábitos de que você está falando. E faz a produção cultural ser falseável no seguinte sentido: ela se dirige a quem? A ilusão da vanguarda era que, em 50 anos, todos estariam consumindo o biscoito fino, como falou Oswald (de Andrade, escritor brasileiro). Do jeito que a coisa vai, parece que não será assim. Acho que temos que lutar, mas não acho que o artista deva procurar mais público.
O que tenho medo é de deixar de gostar, perder o amor.
NUNO RAMOS
Quando você olha para a frente e vê as eleições em 2018, por exemplo, sente-se pessimista ou otimista?
Escrevi um artigo, Suspeito que Estamos... (em maio de 2014, na Folha de S. Paulo, em que concluía: “Suspeito que estamos f...”). Isso era quando eu estava bem otimista (risos). Tenho dificuldade de imaginar que o horror do horror possa acontecer. Fico pensando se já não é agora, se não deu uma configuração na qual a quebra de representação é completa. Temos no Congresso um bando de larápios querendo escapar e cobrando do outro para ele escapar. Se isso não é o auge da mais chocante tramoia política que já vivemos... E isso irradiou para a vida privada. Às vezes, penso se a eleição e a economia voltando um pouco não nos fazem respirar. É a minha esperança. Se a coisa for para um lado Bolsonaro, aí não sei. Tenho 57 anos, já tenho neto. O que tenho medo é de deixar de gostar, perder o amor.
O momento é tão difícil para pensarmos “Espero que já estejamos no fundo do poço”?
Otimista é o cara que acha que estamos fazendo a curva para cima. E este sou eu agora. Não me sinto impotente, deprimido. Estou a fim de papo, de conversa, de guerra. Eu me sinto um pouco exausto. Ligar a TV às 23h30min para ver essas notícias horrorosas nos deixa exausto. Não conseguir mudar de assunto, não conseguir pensar uma coisa abstrata ou sofisticada por seis horas seguidas sem ser invadido. Sinto que a guerra está conosco, temos de agir. Isso já é um otimismo, de certa forma. Estou a fim de jogo. Só que a arte, quando fica muito direta, tem algo errado. O caso célebre é Sabiá, a canção do Chico Buarque e do Tom Jobim, que foi vaiada (em 1968, no Festival Internacional da Canção) porque parecia alienada, e um ano depois você ouve aquilo e é uma espécie de Canção do Exílio onde estavam todos com o AI-5 (o Ato Institucional nº 5, que deu início ao período de repressão mais violenta do regime militar). Então, a arte tem esse jeito. É isso o que precisamos recuperar. Não podemos exigir dela literalidade. A arte não funciona assim.