Enquanto muitas pessoas estão pulando da cama ou começando a preparar o café da manhã, e outras ainda nem ouviram o despertador, uma turma cheia de fôlego já deu início a uma aventura em que o contato com a natureza permite a impressão de não estar na zona urbana de Porto Alegre. A recompensa para corredores amadores de trilhas, que percorrem caminhos estreitos, com inclinações e passagens por matas e até riachos, é o nascer do sol assistido de um dos pontos mais altos da cidade.
Fica localizada na Zona Sul a maioria dos cenários para esse tipo de esporte na Capital. Mais precisamente, em morros que chegam a mais de 200 metros de altura. É comum encontrar, subindo e descendo, pessoas com indumentária de atleta, tênis apropriado para terrenos instáveis e mochilas equipadas com itens para sobreviver a perrengues. Entre os lugares preferidos, estão os morros Apamecor, do Osso, do Santuário Nossa Senhora Mãe de Deus e da Tapera, considerado pelos mais experientes o melhor local para treinar corrida em trilhas no Rio Grande do Sul.
A dificuldade do Tapera é proporcional à beleza de sua vista. Poucos são os corredores que o domam a ponto de conseguir subir, de fato, correndo pelas pedras que o costeiam. Mas não há quem desconsidere percorrer os trajetos mais penosos, mesmo que caminhando, até chegar ao topo.
– O Tapera é meu caso de amor. Foi o morro que me fez começar oficialmente nas trilhas. Apesar de ter participado de outras provas anteriormente, foi ali que descobri o quanto gosto de tudo isso. O lugar tem uma vista fantástica e trilhas supertécnicas – comenta a arquiteta Michelle Moraes, 41 anos, corredora amadora que experimentou sua primeira prova na modalidade em 2017, 10 anos após ter iniciado a praticar em asfalto.
Mais conexão com a natureza
Os atrativos do Tapera vão além da dificuldade que faz brilhar os olhos dos mais ousados. Pode-se citar a vista de 360º de Porto Alegre, os 252 metros de altura e uma cervejaria ao pé do morro. A Steilen Berg já está mais para arena de largada e chegada de treinos do que para uma fábrica artesanal da bebida. Quando o engenheiro químico Juliano Leão Zancanaro e seus sócios levaram a marca para próximo do morro, há cerca de quatro anos, foi mais pela facilidade de estar perto de casa.
Em pouco tempo, o local acabou servindo de facilitador também para atletas, tornando-se um ponto de referência para a localização e encontros em meio às ruas pouco movimentadas do bairro Hípica.
– Alguns corredores têm vindo em vários finais de semana com suas turmas. Nós sempre abrimos a cervejaria, e eles usam o local como base, deixam as coisas, usam o banheiro, às vezes fazem churrasco. É uma turma bem legal, que a gente gosta muito de receber – comenta Zancanaro.
De lá, partem grupos rumo ao topo do Tapera por caminhos já trilhados. Corredores dificilmente estão sozinhos. Eles se misturam a praticantes de outros esportes, como os ciclistas do mountain bike.
O trajeto com cinco quilômetros é como um looping: os atletas sobem, percorrem o morro por cima e descem. Outra trilha tem início contornando a Estrada Jorge Pereira Nunes por um quilômetro até entrar no terreno do Tapera. Como se seguissem um percurso mapeado conforme o formato de várias pétalas de uma flor, os corredores sobem para descer e descem para subir, sempre costeando as faces do morro, podendo percorrer a distância que lhes convêm.
– O morro tem um certo glamour, mas também um grau de dificuldade altíssimo. É curto e alto. Todas as trilhas para chegar ao cume exigem uma inclinação muito acentuada – explica Daniel Gohl, treinador da modalidade, proprietário da Ultra Treinamento Funcional e idealizador da Raiz Trail (conta no Instagram: @raiztrail), uma fomentadora do esporte no RS.
Um percurso de 10 quilômetros no Tapera chega a ter mais de 600 metros de altimetria (ou seja, a quantidade de metros acumulados subindo). As pausas para recuperar o fôlego costumam ser em locais privilegiados, como a famosa Pedra do Rei – apelido dado em referência à pedra do filme O Rei Leão. Poucos resistem a fazer fotos no ponto mais turístico do Tapera, com a cidade à beira do Guaíba.
– Quando tu vais para a trilha, encontra um cenário que não é tanto de rendimento, mas mais de atenção e conexão com a natureza. A gente se sente muito à vontade no meio do mato. Tu esqueces o relógio. Aquela corrida é por prazer total – comenta o engenheiro de produção Gilberto Silva de Castilhos, 27 anos.
Amanhecer no topo
São nos finais de semana que os morros da Capital ganham mais visitantes. Mas a rotina de trabalho e família não é um impeditivo para praticar o esporte em dias úteis. Basta estar de volta ao pé do morro a tempo de não se atrasar para compromissos profissionais.
Para a maioria desses atletas, a corrida começa em torno de 6h30min – aqueles com treinos mais longos, em fase de preparação para provas, madrugam antes. A escuridão não chega a ser um problema: usam lanterna para a cabeça.
Há outros objetos de segurança e sobrevivência necessários. A mochila carrega praticamente um piquenique. Alimentos que vão de paçoquinha e mariola a queijo e salamito servem mais para precaução do que, de fato, para reposição da energia gasta. Em caso de perda, acidentes ou outras eventualidades, é preciso estar preparado para permanecer mais tempo do que o previsto em meio à mata ou no topo de um morro. Celular com bateria carregada, dinheiro, uma peça de roupa extra para esquentar o corpo, apito para servir de aviso sonoro de localização e kit de primeiros socorros são recomendados.
Hoje, corredores contam com aplicativos de ajuda. Já há sistemas que permitem que outras pessoas tenham acesso em tempo real aos aventureiros. Se o atleta parou de se mover, familiares ou amigos saberão que algo pode ter dado errado. Em abril deste ano, quatro brasileiros que participavam de uma prova de 300 quilômetros no interior de São Paulo foram resgatados em uma floresta graças ao alerta de socorro emitido via satélite por meio de um dispositivo portátil.
O treinador Francisco Rainone Júnior, o Chico, 49 anos, acrescenta um episódio – raro, ele diz – que afastou uma de suas alunas. Ele e a corredora praticavam o esporte no Morro do Osso, à tarde, quando presenciaram jovens fugindo para a trilha fechada na tentativa de escapar de assaltantes.
– Evitamos horários como a tarde e a noite porque há mais pessoas circulando. Acho que o melhor período para correr é pela manhã, também por não ser tão quente. Ainda assim é preciso ficar atento, não ficar só vislumbrando a paisagem – reforça Chico.
Há 10 anos percorrendo os morros da Capital e acostumado a guiar grupo de corredores menos experientes, Gohl ainda não presenciou situações de risco:
– Hoje, eu sei onde posso ir e os lugares mais vulneráveis. Priorizamos os treinos ao amanhecer e em grupos. Poucas pessoas têm segurança e conhecimento para correr sozinhas.
Gohl conheceu a corrida em trilhas em 2007, em Florianópolis, e 10 anos depois fundou a Raiz Trail, grupo que surgiu para disseminar a modalidade e dar apoio aos novos adeptos. Provas, treinos, palestras e demais eventos são realizados pela Raiz geralmente com um viés social. As imagens para esta reportagem, por exemplo, foram feitas durante um treino aberto, no morro da Tapera, que pedia apenas a doação de um agasalho no ato da inscrição.
A educação ambiental também é defendida pela Raiz. Em dezembro de 2018, o grupo comemorou um ano de aniversário com a plantação de 12 mudas de árvores no Tapera. No final de 2019, a ideia é plantar 24, e assim por diante. Também foi da turma a iniciativa de realizar, de forma inédita, um plogging em trilha. A prática une corrida ou caminhada com recolhimento de lixo, e foi realizada ao redor do Santuário Nossa Senhora Mãe de Deus.
Conheça também
Liga Gaúcha de Trail Running
Organizou o Campeonato Gaúcho de Trail Running, lançado neste ano, com cinco etapas: Santa Maria do Herval, no Vale dos Sinos (em maio), Morro da Tapera, em Porto Alegre (junho), Taquara (julho), Gramado (dia 5 de outubro) e Sapiranga (novembro). As distâncias nas provas são variadas, indo de cinco a mais de 50 quilômetros. Informações em cgtrail2019.wordpress.com.
Maria's da Trilha
Projeto que nasceu como uma página contadora de histórias e que se transformou em um movimento de mulheres compartilhando o mesmo estilo de vida. No grupo de WhatsApp, há quase 200 integrantes (informações em mariasdatrilha.com.br). A iniciativa foi da enfermeira Lucinara Luchese Guerreiro, corredora amadora de trilhas que segue rituais semelhantes aos de atletas profissionais. Ela inclusive já se lançou a provas longas: em julho, em Itanhandu (MG), Lucinara completou 235 quilômetros em 54 horas, na Ultra dos Anjos Internacional (UAI).
– Jamais imaginei que fosse tomar essa proporção. A mulherada comprou essa ideia mesmo. De uma hora para a outra, eu comecei a ser referência para muitas, desde a escolha de roupas até as provas – conta Lucinara.
Saiba mais
- Todos os topos de morros da Capital são áreas de preservação, o que implica em restrições de uso, conforme estabelece a Lei Federal 12.651/2012 do Código Florestal.
- Segundo a Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam), corridas e caminhadas em trilhas são permitidas nessas áreas conforme o consentimento de seus proprietários.
-A organização de eventos, quando demanda inscrições ou envolve montagem de estrutura no morro, depende de autorização da prefeitura de Porto Alegre.