Já haviam passado mais de duas horas e meia de prova quando o atleta amador Akira Kumagai se aproximou do km 39 na Maratona de Porto Alegre. Naquele ponto, faltando apenas três quilômetros para cruzar a linha de chegada, Kumagai sentiu as pernas pesadas demais, a respiração ofegante. Não estava conseguindo manter o ritmo. Se diminuísse a passada, corria o risco de não alcançar o índice mínimo de duas horas e 58 minutos para se credenciar à Maratona de Nova York, seu grande objetivo.
Um amigo que o acompanhava de bicicleta percebeu o apuro, se aproximou e colocou um telefone em seu ouvido para escutar uma mensagem:
– Vai, papai! Vai, papai! Corre bem rápido. Eu te amo, eu tô te esperando aqui.
Ao ouvir o recado do filho Fernando, de cinco anos, que o aguardava no ponto final da corrida, Kumagai conteve as lágrimas, recuperou o fôlego e voltou a apertar o passo. Cruzou a linha de chegada três segundos antes do limite. Ao concluir a prova, olhou para trás e viu o menino correndo em prantos em sua direção. Os dois se abraçaram, um colado ao peito do outro como uma medalha.
A cena, registrada pelo fotógrafo de ZH Jefferson Botega, ilustra o tanto de dor, mas também de êxtase, que marcam os últimos metros de uma corrida, como a disputada no último domingo de maio na Capital. Kumagai é um dos 10 mil corredores de 12 países que participou da 36ª maratona, prova que tradicional de Porto Alegre.
ZH localizou alguns dos personagens emblemáticos daquele dia para revelar o que se passa no corpo e na mente de quem leva ambos ao limite pelo sonho de ultrapassar a linha final após horas de exercício extenuante.
– Aquele áudio me despertou uma energia enorme. Estava ficando muito cansado, mas, ao ouvir a voz do meu filho, recuperei o ânimo que faltava. Pensei: tenho de fazer isso por ele – relembra o engenheiro civil de 41 anos, que deu de presente a medalha da prova ao menino.
Após o sofrimento, o êxtase da conquista
Se os 42 quilômetros de uma maratona costumam ser marcados por muita concentração, luta contra dores e cansaço, o último passo geralmente é de alegria incontida, como a experimentada pelo dentista de Porto Alegre Carlos Eduardo Weber, 34 anos. Há dois anos, ele vinha perseguindo o sonho de concluir uma maratona abaixo do tempo de duas horas e 40 minutos. Neste ano, conseguiu vencer a linha de chegada na Capital com uma folga mínima de dois segundos.
– Eu havia conseguido chegar perto do meu objetivo no Chile. Depois, em Porto Alegre, acabei machucando o calcanhar e fiz meu pior tempo. Desta vez, consegui.
A chegada é a melhor sensação do mundo – comemora Weber.
O fisiologista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Álvaro Reischak de Oliveira explica que esse momento costuma ser marcado pela liberação de substâncias no organismo como adrenalina e beta-endorfina.
– Há todo tipo de descarga neural que se possa imaginar. A beta-endorfina age de forma similar à morfina com efeito analgésico e de bem-estar – conta Oliveira.
É esse tipo de sensação que experimentaram, sob as lentes de ZH, esportistas como Carlos Weber, Akira Kumagai, Janete Tedesco, Renan Anschau, Vinicius Stucchi e seus amigos de sofrimento e superação, entre tantos milhares de outros atletas profissionais e amadores que desafiarem suas próprias limitações.
Chegada virou celebração da amizade
Às vezes, o abraço na linha de chegada é coletivo. Outro momento simbólico do final de semana passado reuniu quatro amigos de São Paulo que costumam enfrentar juntos os treinos e competições. Essa rotina ficou ameaçada quando um dos integrantes do grupo desistiu do atletismo, mas a Maratona de Porto Alegre marcou sua volta às corridas graças ao apoio dos companheiros.
Um dos atletas amadores de destaque no país nos últimos anos, o vendedor Vinicius Stucchi, 42 anos (na foto, o único com o rosto à mostra), conta que, no ano passado, se frustrou com a dificuldade para melhorar seu desempenho, com as lesões e abandonou tudo.
– Me machuquei um mês antes da Maratona de Boston e me revoltei. Cansado, machucado, falei pra mim mesmo: vou largar esse negócio de correr.
Após meses afastado, tudo mudou quando o amigo e administrador de empresas Thiago Pontes, 42 anos (de boné laranja), convidou-o a ajudar na preparação para a prova de Porto Alegre. Os dois treinaram e disputaram juntos a maratona, e Stucchi redescobriu o prazer do esporte. Nos últimos quilômetros, outros dois amigos se somaram para todos cruzarem unidos
a linha final. A foto do grupo com os braços entrelaçados representa a celebração dessa amizade.
– Essa foi a 20ª maratona que disputei, mas foi a mais emocionante por tudo o que estava envolvido. Cheguei ao final ao lado dos meus melhores amigos. A foto capta exatamente isso – emociona-se Pontes.
Renan superou lesões e comemorou
O técnico de controle ambiental Renan Anschau, 27 anos, experimentou como poucos a dor e a euforia de concluir uma maratona. Nos dois meses anteriores à corrida, as coisas não foram bem. Sofreu com uma lesão no quadril, com uma tendinite e, na semana da maratona, pegou uma gripe. Por isso, ao longo de todo o trajeto, temia não conseguir chegar ao final.
Quando começou a sentir as fisgadas de uma câimbra na perna esquerda, o atleta foi obrigado a reduzir o ritmo a fim de não parar de vez.
– Meu irmão, que estava comigo, seguiu em frente. Achei melhor diminuir um pouco a velocidade – conta Anschau.
O fisiologista Álvaro Reischak de Oliveira afirma que especialistas ainda têm dificuldade em explicar exatamente porque ocorrem as câimbras, mas é possível dizer que têm relação com desidratação, algum desequilíbrio na concentração de potássio no organismo e a hiperestimulação muscular.
– A desidratação costuma ser um problema porque os corredores não conseguem beber a mesma quantidade de líquido que perdem durante a prova – detalha o fisiologista e professor da UFRGS.
Anschau concluiu os 42 quilômetros do percurso, mas se jogou ao chão logo depois de dar o último passo. Com a mão sobre a perna esquerda tomada pela câimbra, deu um grito de dor misturada à euforia de terminar a prova.
– Quando eu consegui chegar, tudo o que eu passei nas últimas semanas veio à tona. Senti muita dor, mas também um alívio imenso – conta o maratonista amador.
Janete saiu carregada nos braços
O final da maratona também costuma coincidir com o esgotamento da capacidade física de atletas que levaram seus corpos ao limite. A professora de educação física e corredora Janete Tedesco, 29 anos, de Pato Branco, no Paraná, não consegue nem lembrar do que ocorreu depois das últimas passadas.
Logo após o 10º quilômetro, começou a sentir um incômodo muscular na região do abdômen. Esse desconforto se transformou em dor forte e, a partir do quilômetro 30, virou motivo de suplício.
– Quando já estava perto de completar o percurso, eu chegava a gritar de dor. Mas, quando começo uma prova, meu objetivo é terminar de qualquer forma – conta Janete.
A atleta amadora praticamente apagou ao final da corrida. Nem mesmo lembrava de que foi amparada e carregada nos braços por um auxiliar da organização antes de ser encaminhada para o atendimento médico.
– Só lembro de ver que o relógio marcava duas horas e 56 minutos, de ouvir alguns gritos, e mais nada.
O doutor em fisiologia e professor de Fisiologia do Exercício da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Álvaro Reischak de Oliveira conta que o corpo de um atleta sofre diferentes efeitos durante uma maratona: desidratação, microlesões musculares, fadiga física e mental.
– Às vezes, o atleta pode querer compensar a dor em um músculo sobrecarregando outro grupo muscular, por isso é comum vermos corredores chegando completamente desequilibrados e descoordenados.