O que você faria em 46 horas e 34 minutos? A gaúcha Ângela Sturzbecher, 35 anos, percorreu, neste período, 235 quilômetros e ficou com o primeiro lugar na Ultramaratona dos Anjos Internacional (UAI) na categoria survivor (sobrevivente, em inglês), organizada entre os dias 29 de junho e 1° de julho, em Minas Gerais. A distância é a mesma que separa as rodoviárias de Porto Alegre e Tramandaí – pasmem – ida e volta.
Criada em 2011 por Fernando Nogueira, 59 anos, dono de uma empresa que organiza provas de corrida, a UAI é uma das ultramaratonas mais difíceis do Brasil pelo seu trajeto, repleto de morros. Resumindo: é chão batido e lomba por todos os lados, em um percurso que passa por várias cidades do sul de Minas Gerais, como Passa Quatro (local de largada e chegada), Itamonte – atravessa o Parque Estadual da Serra do Papagaio –, Alagoa, Aiuruoca, Caxambu, São Lourenço entre outras. O participante ainda tem o tempo máximo de 60 horas para completar o percurso.
– Começamos com a UAI em 2011 com apenas 15 atletas. A prova foi crescendo e, neste ano, aproximadamente 600 corredores participaram. Meu sonho é correr uma prova que eu organizo. Nunca tive tempo – diz Nogueira, ultramaratonista que agora concentra as suas energias na organização das provas.
O sonho de Fernando também era o de Ângela. Em 2017, a porto-alegrense, que mora em Canoas, disputou a UAI, mas teve de abandonar a competição no km 170, 29 horas depois da largada, em razão de uma desidratação.
– Tive de voltar lá este ano para pagar essa dívida que tinha comigo mesma e completar o trajeto – conta a atleta.
A linha de chegada da UAI não representa apenas o término da prova, mas também um marco na mudança de estilo de vida de Ângela.
Há 10 anos, a gaúcha trabalhava como gerente comercial de uma indústria de Porto Alegre, era sedentária e fumava quase duas carteiras de cigarro por dia.
Em 2012, largou a nicotina e, em 2016, trocou de trabalho. Deixou um cargo com um bom salário para estudar educação física e estagiar em academias. Aproximava-se, assim, das atividades esportivas.
Desde então, viu na corrida uma nova forma de aliviar os problemas. Em 2012, correu a sua primeira prova. Comemorou os 10 quilômetros da rústica que percorreu em Porto Alegre como se fossem os 42 quilômetros de uma maratona olímpica. Pouco a pouco, foi aumentando a distância percorrida.
O que era apenas um hobby virou praticamente uma profissão. Assim como a maioria dos atletas do Brasil, Ângela ainda sofre com a falta de recursos. É obrigada a dividir o seus períodos de treinamentos com os estágios em duas academias.
Sonha com as linhas de chegada das ultramaratonas e com a chegada de um patrocinador – até porque participar de provas como a UAI exige, pelo menos, R$ 6 mil em equipamentos. E o retorno financeiro, mesmo quando se vence, é praticamente zero.
Enquanto ainda se recuperava do desgaste provocado pelo percurso de 235 quilômetros da Ultramaratona dos Anjos Internacional, em Minas Gerais, a gaúcha Ângela Sturzbecher conversou com GaúchaZH por telefone na última quarta-feira. Confira alguns trechos:
Como um atleta se prepara para uma ultramaratona?
Treinamos em três turnos para gerar uma fadiga do corpo e ficar mais próximo do desgaste que teremos na prova. A primeira noite da competição se pode treinar e simular. Na segunda noite, não.
Só na prova para saber como o corpo vai reagir. O problema é que Minas Gerais tem muitas subidas e descidas. E Canoas não tem isso. Por isso treinava em Sapiranga, no Morro Ferrabraz, para me acostumar com as lombas.
Como funciona a prova?
A prova é toda com subidas e descidas, passando no meio de propriedades rurais. Na modalidade de que participei, você larga e chega sozinho. Por isso levamos alguns alimentos dentro da mochila, que chega a pesar seis quilos. Tem de ser autossuficiente durante o trajeto. A única ajuda que a organização da prova te dá é a assistência médica em caso de você não conseguir se locomover.
Quais foram as dificuldades?
Tive grandes problemas com bolhas nos pés. Mas tive de resolver sozinha. A dor muscular, a partir de 150 quilômetros de prova, é gigantesca. É complicado administrar isso. Outro ponto difícil é a questão do sono. Tive momentos em que dormi caminhando e acordei enquanto estava caindo.
Como funciona a alimentação?
Durante uma prova tão extensa, é necessário comer massa, arroz, alimentos fortes. Por isso, existem postos de apoio de 30 em 30 quilômetros praticamente, onde você pode se alimentar e descansar um pouco. Quando eu chegava a um posto, pedia uma colher de massa e saía comendo. Quando estamos em uma atividade destas e relaxamos o corpo, trava tudo. Então não pode parar por muito tempo.
Qual foi o pior momento que você teve de superar na prova?
Foi entre os postos dos kms 184 e 204. Cheguei a pegar o telefone. Se tivesse sinal, teria ligado para alguém ir me buscar. Era madrugada de domingo, na segunda noite da prova. Perdi toda a pele das solas dos pés. Estava tudo em carne viva. Estava com dor, cansada e perdida no trajeto. Minha lanterna estragou e estava me guiando pela luz da lua. Quando se fica duas noites em atividade sem dormir, começamos a ter alucinações. Vi coisas que não existiam: pessoas, casas e até um dinossauro. Juro. Foi o momento em que fiquei mais assustada.
Como conseguiu retornar à prova?
Do nada, passou uma pessoa e eu pedi informações. Consegui voltar ao trajeto certo. Quando cheguei ao posto do km 204, parecia uma miragem. Um dos organizadores me ajudou porque estava entrando em hipotermia. Me recuperei e fui com um colega até o final da corrida. Depois disso, a maior dificuldade foi o problema de dormir caminhando. Lutávamos contra o sono. Foi uma aventura bem bacana, não é?
E como é a recuperação?
Meu pés infeccionaram e tiveram queimaduras por causa do atrito. Fiquei uma semana inteira com pés para cima, usando antibióticos. Ainda estou me recuperando da fadiga muscular. O ideal é que se fique parado de um a dois meses.
Existe retorno financeiro?
Não. Tenho esperança de que alguma marca esportiva veja os ótimos atletas que temos no Rio Grande do Sul e invista na gente. Não precisa nem ser uma ajuda financeira. Apenas em equipamentos já nos daria uma ajuda muito grande. Ainda tenho esperança que alguém olhe para a gente.