Inspirada em uma das trilhas mais conhecidas do mundo, uma rota em Santo Antônio da Patrulha, município a 70 quilômetros de Porto Alegre, atrai turistas dispostos a admirar a natureza e a exercer a espiritualidade no Litoral Norte. O percurso gaúcho, criado em 2014 e reconhecido pelo Consulado da Espanha no Brasil, vai da zona urbana à área rural do município e é o único no país reconhecido como réplica do seu irmão espanhol mais velho, o Caminho de Santiago de Compostela, na Espanha, nascido no século nove.

Se a trilha francesa do Caminho de Santiago de Compostela atinge 800 quilômetros, as opções gaúchas, localizadas na região da Serra Geral, são de 12 quilômetros e de 19 quilômetros. GaúchaZH percorreu, em 26 de janeiro, a opção mais extensa. A rota é de dificuldade moderada-difícil e permite observar com grande ângulo de visão a Lagoa dos Barros e o Parque Eólico de Osório – a geografia, com trechos de relevo plano, subidas e mirantes de vales, assemelha-se aos últimos 100 quilômetros do caminho espanhol, na região da Galícia.
Até 2016, o passeio gaúcho era gratuitamente oferecido pela prefeitura, que garantia carro de apoio, guia e até cajado. Mas, segundo a secretária municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Eliane Cunha, os gastos de até R$ 2 mil a cada domingo se tornaram pesados, e o Executivo abriu a rota para exploração comercial.
Hoje, há apenas uma agência no município que opera o passeio, no primeiro e no último domingo de cada mês, por R$ 59 por pessoa (ou R$ 131 saindo da Capital) – incluindo translado de van da Igreja Matriz, em Santo Antônio da Patrulha, até a zona rural, carro de apoio com enfermeira, água mineral e rapaduras no meio do passeio. Não há mais carimbos no passaporte durante o trajeto, como já houve. Dois mirantes devem ser inaugurados neste ano.
Quem quer economizar pode realizar o caminho por conta própria, uma vez que a trilha é bem sinalizada com placas. Só não há fontes d'água nem bancos para descanso – os banheiros estão em dois comércios familiares ao longo da trilha. Para ganhar o certificado de peregrino, é preciso se dirigir, antes, à Secretaria Municipal do Turismo (Avenida Borges de Medeiros, 456, de segunda a sexta-feira, das 8h às 13h e das 14h às 17h) para, após o percurso, receber o atestado.
Bênção para começar
O encontro com guia ocorre às 7h, em frente à Igreja da Matriz de Santo Antônio da Patrulha, no bairro Cidade Alta, para receber a bênção do padre da paróquia. Ao lado da entrada da construção inaugurada em 1928, preste atenção à placa que indica o início do passeio – dali a algumas horas, o turista terminará a caminhada por ali e as frases irão adquirir outro sentido.

Pegamos um cajado e fomos de van até o início do Caminho Gaúcho, na Estrada Bento Silveira Goularte, às margens da RS-030 e em frente à antiga Açúcar Gaúcho S.A (Agasa), hoje uma fábrica de ventiladores. A duração média do trajeto é de quatro a cinco horas.
Antes de subir a lomba, siga a tradição espanhola e leve uma ou mais pedras no bolso. Carregar o peso é a penitência a que o peregrino se submete para pagar seus pecados ou realizar um desejo, explica o historiador e patrono informal do caminho, Jaime Nestor Müller, 69 anos. Ao lado de GaúchaZH, ele fará a trilha pela 58ª vez. Em duas décadas, percorreu pelo menos 708 quilômetros – é quase a distância do maior dos caminhos de Santiago de Compostela, de 800 quilômetros. O aposentado, no entanto, nunca fez a trilha europeia.
— Diz o padre que precisa levar as pedras de acordo com seus pecados. Alguns vão ter que levar um carrinho cheio — brinca o historiador. — A primavera é a melhor estação para a caminhada. No inverno também dá, mas é preciso ficar preparado para a maior chance de neblina — acrescenta.

Preparação para o caminho espanhol
A estrada rural passa em frente a propriedades familiares – provavelmente, você verá agricultores transitando despretensiosamente. Alguns puxam papo: questionam de onde você é ou, pelo contrário, sem serem indagados, contam a própria história com detalhes, como se a presença do turista puxasse uma longa linha de um novelo de lã. Placas demarcando a distância já percorrida aparecem pelo caminho, com citações proferidas por Santo Antônio.
A caminhada contava com um grupo de mais de 10 pessoas. À frente e com passo rápido, estavam o designer de sapatos Edson Oliveira, 61 anos, acompanhado da cunhada, a coordenadora de eventos Greice Oliveira, 39 anos. Ele faz trilhas há alguns meses como prática para o caminho espanhol, planejado para durar 30 dias.
— Eu era muito pobre e fui morar em Novo Hamburgo aos 12 anos para trabalhar. Me esforcei muito e melhorei de vida. Decidi que faria a caminhada quando me aposentasse para agradecer a Deus — conta.

O consultor de vendas Armando de Oliveira dos Santos, 36 anos, e a enfermeira Charlene Pires, 33 anos, faziam a trilha em Santo Antônio da Patrulha pela primeira vez a pé. Moradores de Osório, eles gostam de percorrer trilhas na natureza.
— Fazemos sobretudo em Santa Catarina. Não estamos treinando para Santiago, queremos mesmo é conhecer aqui — diz o consultor de vendas, que mais tarde elogiaria o passeio, tirando o sol forte.
Destaques do trajeto

Quando, pela segunda vez, a floresta não mais tapar a vista, repare à esquerda a imponente Lagoa dos Barros, a única do Estado abastecida com água da região do Planalto. Desfrute da brisa e observe a porção de terra que parece uma ilha – o local era, de fato, isolado pela água, mas foi aterrado para a construção da freeway. Ao lado, está a Agasa e as casas que abrigavam funcionários da estatal. Mais à frente, a terceira grande vista permite ver Tramandaí ao fundo.

O trajeto é constantemente feito por adeptos de mountain bike. A reportagem encontrou nove ciclistas do grupo Sapedal, que pedalavam em um caminho de 40 quilômetros na região, costurando estradas vicinais.
— Vamos tomar banho de cascata no fim, com a roupa que estamos mesmo — diz a professora de Educação Infantil Letícia Muniz, 27 anos.
A vegetação do caminho gaúcho é marcada por plantações de milho e de açúcar. Um dos produtores de cana é Fernando Gomes, 46 anos. Em frente à propriedade, os bois Mimoso e Brasino observam os peregrinos.
— Sem eles puxando a carroça, eu não faço nada — diz o agricultor, oferecendo um copo de cachaça artesanal que verte pela torneira de uma serpentina.
Quando o relógio marca 10h, o sol já arde sobre nossas cabeças. O chapéu, aqui, faz diferença. Percorridos oito quilômetros, uma placa motiva o peregrino: "Quem ama não conhece nada que seja difícil". Cerca de 500 metros depois, os dois caminhos gaúchos (de 12 quilômetros e de 19 quilômetros) se unem. Quem optou pelo mais extenso deve prestar atenção às placas amarelas. Quem escolheu a trilha mais curta deve reparar nas azuis. Quando 10 quilômetros ficaram para trás, observe à esquerda uma casa branca: é o armazém do Mauro, que vende bebidas e comidas e cobra R$ 1 pelo uso do banheiro.
— Quem passa aqui é de outra cidade, um povo divertido — diz a dona do bar, Neuza dos Santos Spitznagel, 42 anos.

Siga em frente, apesar do sol, e preste atenção quando um poste branco com uma cruz moura vermelha no alto despontam em meio ao caminho. É a cruz de ferro, onde o peregrino deixa as pedras de penitência e segue mais leve seu destino. Só que, de forma levemente irônica, à frente está uma das partes mais difíceis do caminho, uma subida íngreme pontuada por rochas no chão. Sempre à esquerda, repare nos muros de pedra, construídos por imigrantes açorianos. Caminhe alguns metros e repare na casa amarela com uma cruz: a construção já foi uma escola e, depois, uma igreja. Hoje, está abandonada.
Morador de Santo Antônio da Patrulha, o programador Edson Silveira, 42 anos, resume a visão dos locais sobre o caminho gaúcho.
— Aqui a gente está acostumado a andar no mato. Se falavam para a gente buscar uma vaca, já era dois quilômetros de caminhada — brinca.

Quando o peregrino encontrar uma placa azul indicando 7 quilômetros percorridos (na verdade, 12 quilômetros para quem começou em frente à Agasa), a dica é olhar para os grandes morros a Nordeste. Da esquerda para a direita, são o Pedra Branca, em Santo Antônio da Patrulha, o morro da Figueira, em Rolante, o morro do Cantagalo, em Santo Antônio, e o morro Grande, em Caraá.
O segundo e último ponto de parada é o Sítio das Abelhas, que vende mel, suco de uva e produtos coloniais. O local está em reforma e abrigará um mercadinho e espaço de descanso para peregrinos, com banheiro. Aqui, o trajeto fica fácil, ladeira abaixo. Já na planície, no nível do mar, próximo à placa azul indicando o km 10, olhe para trás, à esquerda, e encare a estátua branca de Santo Antônio, com 16 metros de altura.

Em seguida, o fim do caminho gaúcho é no início do perímetro urbano, onde é preciso prestar atenção aos carros transitando na rua. Há uma última subida, extenuante, da Cidade Baixa para a Cidade Alta. Próximo à igreja, na Avenida Borges de Medeiros, repare nas casas conservadas com estilo arquitetônico açoriano. Quando a via se tornar plana novamente, repare na torre da Igreja da Matriz à esquerda. Volte ao ponto de partida e veja novamente a placa que marca o início do Caminho Gaúcho de Santiago de Compostela. Ela ganhou outro sentido?
Se sim, aproveite a sensação de plenitude e descanse sob a sombra da Praça Arquipélago dos Açores. Agora você também é um peregrino.
Mapa da trilha
- O ponto de encontro para a caminhada é a Praça Arquipélago dos Açores (em frente à Igreja Matriz), de onde os participantes seguem de ônibus até a RS-030, na localidade da Ilha da Lagoa, em frente a Agasa, parada 209.
- Eles seguem pela Estrada Bento Silveira Goularte, Estrada Venâncio Gomes Soares, Estrada Floriano Silveira Ramos, na localidade de Montenegro, segue pela Estrada Boa Vista, localidade de Palmeira do Sertão, até a Rua Adolfo Kreck Filho (em frente ao Parque da Guarda), Rua Ângelo Tedesco, Rua João Pedroso da Luz, Avenida Borges de Medeiros, até a Rua Padre Izidoro Resck, retornando à Igreja Matriz Santo Antônio (mesmo local da partida), onde será encerrado o percurso.
Quem quer fazer por conta própria
De carro: saia da rodoviária da cidade pela RS-030, em direção a Osório. Se a escolha é o caminho de 12 quilômetros, desça na localidade de Montenegro, na fruteira do Floriano. Quem optar pela trilha de 19 quilômetros estaciona em frente a Agasa.
A pé: vá à rodoviária de Santo Antônio da Patrulha e compre, no balcão da Unesul, um bilhete da linha Santo Antônio da Patrulha-Osório (R$ 5,90). Para a trilha de 12 quilômetros, desça na localidade de Montenegro (fruteira do Floriano). Para a trilha de 19 quilômetros, peça para parar na Agasa. As viagens são de hora em hora, de segunda a sábado, das 6h45min às 21h15min, e, no domingo, das 7h45min às 21h15min.
O que você precisa saber para o passeio
- É possível realizar o caminho por conta própria, uma vez que a sinalização é boa. Com guia, o passeio fica mais seguro.
- Tenha em mente que é preciso ter algum condicionamento físico para realizar o percurso. Se você não faz nenhum exercício e está acima do peso, talvez a caminhada não seja a melhor opção.

- Leve bastante água mineral. O trajeto não tem fontes d'água como o caminho de Santiago de Compostela. Há apenas dois botecos familiares no caminho que oferecem bebida, alimentos e banheiro. Até lá, você passa sede.
- Pense bem na época em que você realizará o caminho. No verão, o calor do meio-dia pode ser extenuante. Comece bem cedo ou no meio da tarde. Leve chapéu e óculos de sol.
- Use calçados próprios para longas caminhadas.
- Leve protetor solar e reaplique ao longo do caminho.
- Alimentos leves são a melhor pedida, como barrinhas de cereal ou biscoitos. Antes de sair de casa, coma banana para não ter cãibra. E faça um bom alongamento.
- A estrada é rural, mas é preciso prestar atenção porque, eventualmente, passam carros.
- Leve sacola de lixo – há somente duas lixeiras em todo o caminho.
Mais informações
- Prefeitura de Santo Antônio da Patrulha: turismo@pmsap.com.br ou telefones (51) 3662-8560 ou (51) 3662-8559, das 12h30min às 18h30min.
- Rodoviária de Santo Antônio da Patrulha: (51) 3662-5010
- Associação dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela do Estado do Rio Grande do Sul (Acasargs): contato@acasargs.com.br
- Elos Travel: atendimento@elostravel.com.br ou telefones (51) 3662-2061 ou (51) 3141-4877, das 8h às 12h e das 13h30min às 18h30min.
- Dica de almoço: Restaurante Da Colônia (R$ 32,90 de segunda a sexta, R$ 39,90 sábado e domingo), no cruzamento da RS-030 com a RS-474. Prove a lasanha de amendoim, especialidade da casa.