O baiano é um estado de espírito. Jorge Amado escreveu essa frase no Guia de Ruas e Mistérios – Bahia de Todos os Santos, publicado em 1945. Descobri o livro no segundo dia de viagem, quando conheci a casa de Zélia e Jorge, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. Um guia informal da cidade misturando história, ladeiras, cultura popular e personagens que segue surpreendentemente atual.
Caminhei pelas ladeiras do Pelourinho, enchi os olhos com o pôr do sol do Bonfim e me perdi pelas ruas da Cidade Baixa dos Capitães de Areia (outro livro do autor que eu levava na bolsa) com as palavras cheias de poesia e cadência de Jorge.
A caminhada pelo Pelô é encantadora. Voltei lá tantas vezes quantas pude. O Cravinho (Largo Terreiro de Jesus – Pelourinho) é imperdível – não só pelas cachaças com as mais diversas infusões, mas também pelas comidinhas. A moela ensopada servida com molho é deliciosa. Passeie pelas ruas – evite lugares com poucas pessoas ou ainda não revitalizados – e vá até a Ladeira do Carmo e curta a vista do pôr do sol no Cafelier (Rua do Carmo, 50 – Santo Antonio).
O Pelourinho concentrava as melhores moradias da cidade até os anos 1950, quando sofreu um processo de degradação com a transferência da população para outros pontos da cidade. A região tornou-se moradia popular e palco da cultura negra na cidade. A partir dos anos 1980, com o reconhecimento do casario como Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas (ONU), começou a revitalização da área, com polêmicas retiradas de moradores. Ali fica o Olodum e foram gravados o filme Ó Paí, Ó, além dos clipes They Don’t Care About Us, de Michael Jackson, e The Obvious Child, de Paul Simon.
Para aproveitar a visita com tudo que Salvador tem a oferecer, é preciso decidir qual das versões da cidade você quer conhecer. Tem a capital dos Capitães de Areia de Jorge Amado, com sua história ainda viva nos azulejos portugueses que se esfarelam nas paredes da Cidade Baixa.
Você pode escolher a Salvador do Pelourinho, com as atrações para turistas e as dezenas de igrejas que guardam riquezas surpreendentes. Tem a Bahia das praias – e quantas praias! – com o pôr do sol imperdível no Farol da Barra, passando pela Itapuã de Dorival Caymmi e pela Ribeira e Boa Viagem, as queridinhas dos turistas.
Ainda existe a Salvador da comida baiana. Acarajé, vatapá, moqueca de peixe, pirão, rabada, bobó de camarão, tapioca e o indefectível sarapatel. Cada palavra é um suspiro de saudade.
Minha dica? Conheça todas. Sinta e viva cada uma dessas versões de Salvador. Pulse com elas. A mistura do que chamamos Brasil: é disso que se trata a Bahia.
*A jornalista, comunicadora da FM 102.3 e editora do blog RoteirodaSara.com, viajou a convite do Wish Hotel da Bahia.
Elevador do Taboão, atração quase invisível
A fachada semiencoberta por plantas do Elevador do Taboão me chamou a atenção na primeira vez em que passei na frente. Um dos equipamentos mais antigos de ligação entre as cidades Alta e Baixa de Salvador está fechado há 54 anos. O motorista do carro de aplicativo, que já tinha passado por ali dezenas de vezes, ficou surpreso quando perguntei sobre o lugar:
– Nunca nem notei que tinha isso escrito. Para mim, sempre foi um prédio velho.
No início de junho, foi assinada, pela prefeitura de Salvador, a autorização para início das obras de restauração. Por enquanto, não vá sozinho até a região. Use um táxi ou automóvel de aplicativo.
A Cidade Baixa tem inúmeros prédios que pedem restauro. Vários são tombados pelo Patrimônio Histórico. Apesar da vontade de subir as ladeiras caminhando a partir do Mercado Modelo, prefira o Elevador Lacerda. Muitos prédios foram abandonados, e o caminho pode não ser seguro para turistas.
Porto do Moreira, encontros e sabores
Quer conhecer o verdadeiro sabor de Salvador? Desde 1938, o Porto do Moreira (Rua Carlos Gomes, 488, abre todos os dias, das 9h30min às 16h) tem sido ponto de encontro de notáveis e anônimos, reunidos pela boa comida e pelo clima do centrão. Jorge Amado era cliente fiel, assim como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Zeca Pagodinho. Pelas paredes, estão fotos de grandes encontros.
Francisco Moreira, filho dos fundadores Maria Figliuolo e José Moreira da Silva, hoje toca o negócio com a ajuda dos filhos (na foto, com a filha Cristina). Prove a moqueca de miolos e o sarapatel. De sobremesa, vá de ambrosia – das melhores que já provei.
Um giro por Itaparica e Ilha dos Frades
Se você tem alguns dias, vale contratar um passeio para as ilhas dos Frades e Itaparica. Frades está dentro do projeto Fundação Bahia Viva. As comunidades locais passam por transformações que estimulam iniciativas de fortalecimento da vocação turística dos locais. A praia tem água muito quente e verde. Uma escadaria leva à Igreja Nossa Senhora de Guadalupe, que tem uma das mais belas vistas da Bahia de Todos os Santos. É preciso pagar R$ 10 para entrar na ilha.Dali, seguimos para Itaparica. A parada é em um dos lugares mais bacanas: o Manguezal. Em frente ao mar, com areias brancas e espaços em redes e cadeiras para descansar, é um oásis com boa comida, drinques deliciosos e o sol (que sapeca!) da Bahia.
A Grou é o receptivo com o qual fiz esse passeio, e também o Bahia Noite. Esse último é bem turístico e leva para um jantar e a apresentação de danças e música no Pelourinho. É bacana para quem recém chegou à cidade ou vai ficar pouco tempo. O jogo de capoeira dos bailarinos é de tirar o fôlego. Um passeio de escuna para a Ilha dos Frades e Itaparica custa R$ 100 por pessoa. Bahia Noite (incluído o jantar) sai por R$ 200 por pessoa. Mais informações podem ser obtidas no site grou.com.br ou pelo telefone (71) 3036-0710.
Lembranças e afetos na Casa do Rio Vermelho
“Cadê o seu Jorge?
Está no seu jardim
Ao lado de Zélia
E de um pé de jasmim.”
O bairro do Rio Vermelho fica a cerca de 15 minutos do centro de Salvador. Reserve um dia inteiro para visitar as memórias dos escritores Jorge Amado e Zélia Gattai na casa que construíram para celebrar o amor um pelo outro e pela Bahia. As cinzas do casal estão espalhadas no quintal, junto a um sapo de cerâmica – o animal preferido dos dois, criavam vários – e próximo a Exu, que foi assentado como orixá protetor da casa antes mesmo de a família se mudar para lá, a pedido do próprio Jorge.
O acervo da Casa do Rio Vermelho emociona. As peças, muitas delas mantidas praticamente intactas, fazem a presença de Jorge e Zélia tão forte que é quase possível ouvir a voz dos dois enquanto leio os trechos de cartas trocadas entres os apaixonados: “Sinto tua falta cada vez mais. Teu”, diz um trecho assinado por Jorge. Viveram ali, juntos, por 40 anos. A sala tem a máquina de escrever e originais anotados a mão pelo escritor. O terreno foi comprado com a venda dos direitos do livro Gabriela Cravo e Canela para a MGM. Aproveite o lugar. Não faça uma visita rápida. Leve seu livro de Jorge – ou adquira um na lojinha da entrada – e leia sob as árvores do quintal. A experiência é inesquecível, eu prometo.
Depois, caminhe até a praia do Rio Vermelho. Os melhores acarajés são o da Cida, e os abarás, da Regina – anote esses nomes. Ali perto, no antigo Mercado do Peixe, prove uma legítima moqueca de peixe e camarão. Escolha o restaurante mais próximo do mar.
Na beira da praia, as estátuas de Jorge e Zélia olham o mar. De mãos dadas. “A vida me deu mais do que pedi e mereci. Não me falta nada. Tenho Zélia e isso me basta.”
História renovada no Hotel da Bahia
Fiquei hospedada no Wish Hotel da Bahia (Av. Sete de Setembro, 1.537, fone 71 3021-6700). Projetado em 1940 pelos arquitetos Diógenes Rebouças e Paulo Antunes Ribeiro, o Hotel da Bahia é considerado um ícone do modernismo baiano.
O hotel é uma galeria de arte aberta ao público. São mais de 350 obras em diferentes técnicas artísticas. No restaurante, o mural Festejos Regionais Bahianos, pintado em 1950 por Genaro de Carvalho, impressiona. Murais de concreto armado do artista argentino Carybé, que se mudou definitivamente para Salvador em 1950, decoram a recepção e dois salões do Wish. Na entrada, também, estão dois exemplares da Poltrona Mole, do arquiteto Sérgio Rodrigues, marco do design brasileiro.
Já os 284 apartamentos do hotel têm fotografias do parisiense Pierre Verger, que viveu 17 anos na África e, na Bahia, tornou-se personagem importante em terreiros históricos de Salvador. O candomblé é outro capítulo apaixonante de Salvador. Foi lá que, em 1996, Michael Jackson ficou hospedado durante as gravações de They Don’t Care About Us no Pelourinho, provocando dias de lotação nas ruas adjacentes pelos fãs que queriam avistar o ídolo, mesmo que rapidamente.
Em abril de 2010, o hotel foi adquirido em leilão pela GJP Administradora de Hotéis, da Rede Wish. No mesmo ano, o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac) tombou o Hotel da Bahia como Bem Cultural do Estado.