Quem vai aos Estados Unidos e escolhe visitar apenas os destinos clássicos, como Nova York, Las Vegas, Califórnia e Flórida, perde a chance de conhecer um outro lado do país, não menos interessante. E nem dá para dizer que não sabemos que ele existe: vemos muito em filmes e séries aquele americano conservador, de chapéu de caubói, em geral republicano, com sotaque sulista, que adora cavalos e não abre mão de ter uma arma em casa. Foi o que encontrei em uma viagem ao interior do Texas, quase fronteira com o México.
Não entenda mal: você vê todo tipo de gente por lá, claro, mas é impossível não sentir um certo choque cultural. O impacto das diferenças, contudo, torna ainda mais gratificante o primeiro contato, quando percebemos que os texanos são pessoas extremamente alegres, gentis e divertidas — algo que nem sempre o turista encontra em outros destinos mais cosmopolitas.
Falo em choque cultural, mas a representante do órgão de turismo do Texas explicou que fez questão de convidar um jornal do Rio Grande do Sul para a viagem porque vê semelhanças entre texanos e gaúchos, muitas vezes referidos como "os caubóis brasileiros" (embora seja difícil encontrar um deles a caráter no meio da cidade). O que mais nos une é uma tradição culinária, a carne assada — aqui, churrasco no espeto com sal grosso; lá, barbecue na chapa com molho adocicado —, e o forte bairrismo. Assim como no Rio Grande do Sul, as pessoas por lá se consideram texanos antes de americanos. Há bandeiras do Estado por todos os lados.
O principal objetivo da nossa road trip, com um roteiro sobretudo ao ar livre, era chegar ao Big Bend National Park, um grande parque nacional com estradas desertas, cânions e infinitas trilhas, o lugar onde o Rio Grande separa EUA e México. Mas passamos por cidades peculiares e interessantes nesta que é a região mais árida do Texas, um pouco do Velho Oeste que imaginamos. Sabe aquela imagem de uma bola de feno rolando por uma estrada deserta, ao som da trilha do filme Young Guns II? Por aí. Para mim, uma pessoa essencialmente urbana, foi uma grande aventura que me tirou da zona de conforto.
Midland, a porta de entrada
Há como visitar o Big Bend National Park saindo de destinos mais conhecidos do Texas como El Paso e San Antonio, mas o aeroporto mais próximo é o de Midland — para onde voamos após o trecho São Paulo-Dallas. Você pode alugar um carro ou contratar uma van com guia e partir diretamente ao parque; nós ficamos dois dias na cidade, um na chegada e outro na saída.
O que você vai ver aos montes por lá: extração de petróleo. Na beira da estrada, abundam aqueles maquinários que, conforme as minhas pesquisas, são conhecidos como cavalo-de-pau. O movimento pendular que permite o bombeamento do produto é hipnotizante.
Não é à toa: Midland está localizada em uma das maiores reservas de petróleo do Texas, que, por sua vez, é o epicentro da produção do mineral nos Estados Unidos. São extraídos na região, chamada de Permian Basin, 2,3 milhões de barris diariamente — para se ter uma ideia, a produção média total da Petrobras em 2017, que foi recorde, chegou a 2,15 milhões de barris diários. E o número deve aumentar: no final de 2016, o governo americano descobriu no Basin o maior depósito de petróleo no país, o que deve ajudar os EUA a tornar-se o maior produtor no mundo (atualmente, é o terceiro). Ou seja, Midland é rica e cresce muito, ostentando uma das menores taxas de desemprego dos EUA.
Pois um dos nossos programas foi justamente visitar um museu dedicado ao petróleo. O Permian Basin Petroleum Museum faz uma viagem por 230 milhões de história desse recurso natural. Como o lugar é financiado pela indústria petroleira texana, não espere uma explanação imparcial (mudanças climáticas? capaz!). O museu também conta com uma coleção dos excêntricos carros de corrida da Chaparral, equipe nascida em Midland que chegou a vencer as 500 Milhas de Indianápolis nos anos 1980.
Para mim, o que valeu a passagem por Midland foi conhecer a divertidíssima Susie Hitchcock-Hall, dona da Susie's South Forty, tradicional loja de doces fundada em 1991 — e um orgulho para a cidade. A esguia senhora nos apresentou a fábrica e tirou todo mundo para dançar country, outra de suas paixões (e do sul dos EUA como um todo).
Ela nos contou também a história de quando sua empresa entrou para o Guinness, em 2002, ao produzir o maior toffee do mundo, com 880 quilos ("Tudo é grande no Texas!", brincou ela). O molde usado para fazer o doce, em formato do mapa do chamado "Estado da Estrela Solitária", está em exposição na parede. Entre as especialidades da marca, destaca-se o Texas trash, mistura de cereais, pretzels e nozes coberta por chocolate branco.
Susie também tem muito orgulho de ter fornecido os doces para o baile da posse de George W. Bush como presidente dos Estados Unidos, em 2001. Aliás, Bush cresceu em Midland, cidade natal de sua esposa, Laura.
Marfa, um oásis no deserto
A melhor palavra que tenho para descrever Marfa é peculiar. Em pleno deserto de Chihuahua, no oeste do Estado, em uma região árida cheia de caubóis, na intersecção das rodovias US 90 e 67, a cidade de apenas e 2 mil habitantes é um destino dominado por arte contemporânea, cultura, estrelas e muita mística. Um polo hipster no Velho Oeste (no passado, Marfa de fato teve seus saloons, como vemos nos filmes), no caminho ao Big Bend National Park.
Os prédios baixinhos, que parecem caixotes, estão aqui e ali, meio solitários nas grandes quadras cortadas por largas avenidas. Em toda Marfa, há somente um semáforo — com só quatro quilômetros quadrados de área, ela realmente não precisa mais do que isso. A icônica caixa d'água das pequenas cidades americanas também está lá, orgulhosamente exibindo o nome "Marfa".
Mas é a noite que começou a colocar esse lugar no mapa turístico. Desde o final do século 19, avistam-se as misteriosas "luzes de Marfa", descritas no site de turismo dos EUA como "uma iluminação estranha, aparentemente sem origem" que "dança pelo horizonte, resultando em um fenômeno inexplicável". Cogitou-se que elas sejam resultado de luzes automotivas e da iluminação elétrica, mas povos nativos as documentaram muito antes do surgimento dessas invenções. Ninguém sabe o que elas são, mas é possível avistá-las quase todas as noites.
Ajuda o fato de Marfa estar um tanto isolada, o que deixa a noite mais escura e facilita a observação das estrelas. Há, inclusive, uma espécie de mirante oficial, a Marfa Lights Viewing Area, a 145 quilômetros a leste da cidade, na Highway 90, que atrai muita gente todos os dias para simplesmente observar os astros em silêncio.
Se o turista quiser ir além, pode visitar o McDonald Observatory, a 48 quilômetros de Marfa, que conta com alguns dos maiores telescópios de pesquisa do mundo. Fomos a um evento de observação, bem comuns por lá, mas, infelizmente, o tempo não permitiu que víssemos grande coisa.
Essa mística pode ser vivida também em um dos maiores ícones locais, o El Cosmico, um hotel/acampamento bem hippie, onde é possível se hospedar em trailers vintage coloridos e muito bem equipados. Se você curte decoração, vai enlouquecer com a loja de suvenires, que oferece produtos estilosos, especialmente pôsteres.
Lugar que reúne artistas, o El Cosmico recebe todos os anos o Trans-Pecos Festival of Music and Love (Festival Trans-Pecos de Música e Amor), em setembro. Se você preferir uma hospedagem mais tradicional, opte pelo Hotel Paisano, que recebeu o elenco de Assim Caminha a Humanidade, filme estrelado por Elizabeth Taylor e James Dean, rodado em Marfa nos anos 1950.
A cidade também é um destino de peregrinação para os apaixonados por arte minimalista graças à Judd Foundation. Em 1971, Donald Judd (1928-1994) abandonou Nova York para se instalar e abrigar suas grandes obras nas espaçosas e abandonadas terras de um antigo quartel-geral do Exército americano, hoje conhecida como La Mansana de Chinati, ou, informalmente, como The Block.
Você pode fazer uma visita guiada que o levará a hangares com inúmeras estantes e vastos pátios cheios de esculturas de concreto. Confesso que a arte de Judd, mesmo com explanações dos guias, não foi muito acessível a mim, mas um amigo crítico de arte me disse que o trabalho do artista é muito relevante em sua área. Li em algum lugar que foi inspiração de Bernardo Paz na criação de Inhotim, em Minas Gerais. Vá e me diga depois o que achou.
Outro ícone da região é a Prada Marfa, que não é uma loja da famosa grife, mas uma instalação de pop-art às margens da US 90. Trata-se de uma pequena construção no meio do nada que remonta a uma vitrine da Prada, com bolsas e sapatos da marca à mostra.
Interprete a obra como quiser; alguns na vizinhança acharam um tanto presunçoso: um tempo depois, surgiu outra pequena construção perto dali, entre as cidades de Marathon e Alpine, com o logo da Target, loja de artigos populares dos Estados Unidos. Essa eterna dúvida de entender ou não a arte, de não saber o que é genial ou apenas presunção, é bastante aparente na série I Love Dick (2017), comédia da Amazon Prime ambientada em Marfa.
Aventuras no parque estadual
De Marfa, descemos rumo à fronteira do México até Lajitas, onde o Big Bend National Park quase se encontra com o Big Bend Ranch Park. Ali, nos hospedamos no Lajitas Golf Resort and Spa, uma das experiências mais texanas da nossa viagem.
Além de ter uma paisagem linda, serviços excelentes e quartos muito bons, esse hotel de quatro estrelas oferece atividades típicas do Estado em um ambiente controlado. Você pode, por exemplo, praticar tiro com diversos tipos de armas de fogo. Tem tiro ao alvo, ao prato e circuitos desenvolvidos por um veterano da guerra do Iraque, com quem pudemos conversar.
Não nos arriscamos a atirar, mas encaramos uma subida e tanto a cavalo. Eu nunca tinha nem sequer montado antes, e enfrentar o caminho montanha acima foi extremamente desafiador (o pior, na verdade, foi a descida — parecia que eu ia para o chão a qualquer momento). A vista lá de cima compensou os momentos de tensão.
Perto dali, é possível visitar a cidade fantasma de Terlingua, fundada no século 19 quando foram descobertas minas de cinábrio, do qual pode ser extraído mercúrio. Com o fim das reservas do mineral, as pessoas foram embora — hoje, são cerca de 60 habitantes. Para quem curte decoração, há uma loja em Terlingua com belíssimos artesanatos com influência da cultura mexicana.
O selvagem Big Bend
Você pode passar as férias inteiras só explorando o Big Bend National Park. Isso porque o parque tem 324 mil hectares com uma oferta de natureza e tanto: tem deserto (de Chihuahua), rio (o Grande), cânions e uma cadeia completa de montanhas (os Chisos). Por vezes, a beleza árida é de tirar o fôlego.
Esse lugar é perfeito para quem gosta de aventuras ao ar livre. O ideal é alugar um carro e percorrer os 160 quilômetros de estradas pavimentadas que cortam o parque ou fazer caminhadas pelos mais de 240 quilômetros de trilhas. O roteiro é para se desligar do mundo. Por lá, você se vê pequeno e frequentemente solitário diante da vasta paisagem. Sem contar que sinal de celular e internet não pegam muito bem.
Como estávamos em uma viagem de trabalho, pudemos ter apenas um gostinho do que dá para fazer no Big Bend — e de como as coisas podem ser imprevistas na natureza. Fomos de van até o início da trilha que leva ao cânion Santa Elena, um dos passeios mais procurados do parque. Ali, o Rio Grande divide os Estados Unidos e o México em dois paredões de 450 metros.
Tinha chovido bastante nos dias anteriores, e o trajeto estava intransitável. Como não tínhamos tempo a perder e não poderíamos voltar, cortamos o caminho atravessando o rio a pé. Ficamos só de roupa de banho e, com água na altura do peito, andamos sobre o fundo barrento com cuidado, mãos ao alto levando calça, tênis, boné. Para os urbanos como eu, momentos de muita adrenalina.
Subimos o cânion até encontrar o rio novamente. Dá para entrar na água, e muitos fazem o caminho da fenda com caiaques ou canoas, em vez de encarar a trilha.
Se você não quiser se aventurar sozinho, várias empresas fazem passeios variados pelo Big Bend. É só se informar no site do parque (em inglês, francês ou alemão).
Onde se hospedar
Há muitas cidades que podem servir de base para os passeios no Big Bend, como Marfa, Alpine e Marathon. Nessa última, passamos uma noite no histórico Hotel Gage, inaugurado na década de 1920. Essa é uma opção para quem quer um pouco mais de conforto e classe — com o plus de ficar em frente aos trilhos em que passam trens de carga. O cenário da ferrovia com uma cidade aparentemente deserta ao fundo rende belas fotos.
Na mesma cidade, há o Eves Garden Organic Bed & Breakfast, uma colorida pousada com uma pegada ecológica (e um oásis democrata no republicano Texas). O lugar é superagradável, com plantas e flores por todos os lados. O destaque fica com o café da manhã, preparado pela dona com produtos orgânicos e da região: foi o melhor que já comi. Panquecas recheadas com mirtilo, suco natural, iogurte artesanal com frutas — tudo maravilhoso.
Quem quiser viver mais a natureza pode ficar nas dependências do parque: há o Chisos Mountains Lodge, com quartos e cabines, e o Chisos Basin Campground, para acampamento. Tudo muito simples.
Para se refrescar
Se você viajar no verão do Hemisfério Norte, enfrentará temperatura acima de 30°C no Texas. Uma boa opção é curtir um dia de refresco pós-Big Bend em uma piscina natural com águas entre 22°C e 24°C o ano todo. A San Solomon Springs fica no Balmorhea State Park, entre as cidades de Balmorhea e Toyahvale, no caminho de volta a Midland.
A piscina tem 7,1 mil metros quadrados e quase oito metros de profundidade. Como vem do Lago Balmorhea, a água é cheia de peixes — mais uma atração aos visitantes. Tem também trampolim e áreas para piquenique e acampamento, além de uma espécie de hotel.
Dá para ficar o dia inteiro lá só pagando o ingresso no parque: US$ 7 (crianças com menos de 12 anos têm entrada franca). Saiba mais em bit.ly/sansolomon.
Comida tex-mex
Além do barbecue, a gastronomia texana é marcada pela influência do vizinho México _ dali vem o nome de comida "tex-mex". Abundam os restaurantes que servem tortillas, nachos, quesadillas e etc. Eu, que não curto muito a culinária mexicana, sofri um pouco: nos levaram até para comer burritos no café da manhã. Com refrigerante.