Por Odete Pinzetta, especial
Disposta a fugir dos roteiros convencionais e ter contato com a natureza, decidi visitar as Ilhas Canárias, aqueles pontos do mapa no meio do Oceano Atlântico, próximos à costa africana.
Formado pelo conjunto das ilhas Lanzarote, Tenerife, Gran Canária, La Palma, Fuerteventura, La Gomera e El Hierro, o arquipélago das Canárias é conhecido como "pequeno continente", em razão da diversidade de paisagens. Território espanhol, recebe mais de 10 milhões de turistas estrangeiros ao ano, mas são pouco conhecidas dos brasileiros, especialmente por não existir voo direto do Brasil para qualquer das ilhas.
Sim, para aterrissar nas Canárias, é preciso sobrevoar o arquipélago e, chegando a Madri, embarcar em um voo doméstico para retornar 2 mil quilômetros em direção ao Atlântico, numa viagem de quase três horas. Visitei Lanzarote, que impressiona pela paisagem vulcânica e serviu de cenário para o filme Abraços Partidos (2009), de Almodóvar, e Tenerife, a maior das ilhas e onde está localizada uma das capitais da comunidade autônoma das Canárias.
Lanzarote
Lanzarote tem uma paisagem natural impactante. Do alto, a vista é de solo árido, com algumas manchas claras. Mas, à medida que o pouso se aproxima, vislumbram-se vilarejos e cidadezinhas com casas invariavelmente brancas. Bastam alguns instantes em solo para que a impressão inicial de estranhamento dê lugar ao encantamento. Lanzarote tem todas as condições para ser inóspita e desabitada, mas é um lugar surpreendente e fascinante.
A aridez do solo que é vista do alto não é miragem. Dois terços do território de Lanzarote está coberto por lava expelida por 32 vulcões que brotaram da terra num único dia, em 1730, e continuaram lançando fogo e lava durante seis anos.
O resultado pode ser observado no Parque Nacional de Timanfaya, formado por 52 km² de crateras de vulcões adormecidos e rios de lava. Uma das formas de se percorrer o "deserto de lava vulcânica" é no lombo de um dromedário. A proximidade geográfica com o continente africano (cerca de cem quilômetros da costa) colaborou para a introdução da espécie para fins turísticos nessa ilha canarina.
Declarado patrimônio mundial da biosfera, o parque preserva um museu mineral em atividade. A temperatura, 13 metros abaixo do solo, chega a 600°C, o que é comprovado pelas colunas de fumaça que emergem do interior da terra quando aberto um pequeno orifício. Aliás, não por acaso, o símbolo do parque é um diabo. O calor vulcânico oriundo das entranhas da terra que chega por fissuras do solo é utilizado por um restaurante do parque para preparar um assado exclusivo de Lanzarote, o "frango ao vulcão".
O lar de Saramago
Não se pode deixar de visitar a casa onde o escritor português José Saramago viveu os últimos 17 anos de sua vida (1993-2010). O local é tão conhecido que, em sua fachada, a numeração foi substituída pela inscrição "a casa" em pequenos azulejos. Em frente à residência e ao edifício que abriga sua fundação, um monumento com o logotipo da instituição homenageia o escritor com a frase "Lanzarote no es mi tierra, pero es tierra mia".
Visitando o interior da casa, tem-se a impressão de que ele ainda vive ali, com sua Pilar del Rio. As portas e as janelas estão abertas, as salas têm vasos com flores frescas, as luzes do escritório estão ligadas. Nesse local, o escritor, agraciado em 1998 com o Prêmio Nobel de Literatura, escreveu as primeiras linhas da sua consagrada obra Ensaio sobre a Cegueira (1995). No jardim dos fundos, onde costumava sentar todas as tardes para contemplar o mar, a cadeira instalada junto a uma pedra grande parece aguardar a chegada dele a qualquer momento.
Após a visita a todas as dependências, a guia convida para sentar à mesa da cozinha para um café, repetindo o hábito de Saramago, como comprovam as diversas fotografias captando esse momento de intimidade com conhecidas personalidades mundiais que o visitaram.
Vinho vulcânico
Outra atração muito interessante de Lanzarote é o vale vitivinícola La Geria, com dezenas de pequenas bodegas que produzem raros e aromáticos vinhos brancos da uva malvasia vulcânica, autóctone do arquipélago das Canárias. De longe, chama atenção a paisagem peculiar resultante do modo singular de cultivo das vinhas no solo de lava negra: plantadas em cavidades de três metros de profundidade, para que as raízes de fixem no solo mais profundo, protegidas dos ventos atlânticos por muretas de pedras em semicírculo.
A lava e a areia que cobrem o vale armazenam a umidade noturna, resultando em uma cepa de vinhos única no mundo, protegida por uma denominação de origem própria: D. O. C. (Denominação de Origem Controlada) Vinhos de Lanzarote. A Bodega Il Grifo, fundada em 1775, é a mais antiga. Além de produzir rótulos premiados em concursos internacionais, também mantém um interessante museu dedicado inteiramente ao mundo dessa bebida.
Também são produzidos outros tipos de vinho, inclusive espumantes de qualidade reconhecida, como o moscatel da Bodega Rubicón, além de tintos e licorosos. A sede dessa vinícola, do século 18, abriga um bom restaurante de comida canarina.
Cultura em cavernas
Outra atração de Lanzarote é um complexo com bares, museus e salas de concertos no interior de cavernas vulcânicas que dividem espaço com o mar, os Jameos del Água (foto abaixo). Obra-prima do arquiteto e artista local César Manrique, comprova que quem tem talento consegue integrar natureza e arte, mesmo num ambiente hostil. Na região de Yaiza, no sul da ilha, há praias de areia branca, água morna e muitas palmeiras, como a Playa Blanca. Com clima de primavera constante, as praias podem ser aproveitadas o ano todo.
Tenerife
A segunda parte da minha viagem foi na ilha de Tenerife, a maior do arquipélago, muito mais verde do que Lanzarote. O cartão-postal é o Vulcão Teide, avistado de todos os pontos da ilha, reconhecido pela Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade. Com mais de 3,7 mil metros, é o pico mais alto da Espanha e das ilhas do Atlântico, e o terceiro maior vulcão do mundo em altura. De teleférico, chega-se ao alto do vulcão, a 3.555 metros de altitude; os 150 metros restantes até o topo são percorridos em trilhas.
Apesar da neve, o frio não atrapalhou, pois o sol brilhava forte no céu limpo. É verdade que essa condição climática frustrou a expectativa de ver o "mar de nuvens", que às vezes se forma na descida do vulcão. Mas, como todo fenômeno natural, é preciso uma dose de sorte de estar no lugar na hora certa, e aquele era o dia de outro espetáculo, o do céu de um azul incrível.
Anchieta, filho ilustre
Santa Cruz de Tenerife compartilha com Las Palmas de Gran Canária o status de capital das Canárias. Outrora um pequeno povoado pesqueiro, hoje é uma bela e agradável cidade de 200 mil habitantes, com ruas limpas e arborizadas.
Mas é preciso resistir à tentação de ficar por ali, pois há lugares encantadores para conhecer, como La Orotava. O tempo parece passar devagar nessa cidadezinha com estilo de Ouro Preto, com um belo conjunto colonial do século 17 e o melhor exemplar da arquitetura barroca do arquipélago, a Igreja de La Concepción.
Há outros pontos de conexão das Canárias com as terras brasileiras. No vilarejo histórico de Garachico, há um porto fundado no final do século 15, pelo qual passaram as caravelas saídas da Europa, que atravessavam o Oceano Atlântico rumo à América.
Em San Cristóbal de La Laguna, em 1534, nasceu São José de Anchieta, batizado na Paróquia de Nossa Senhora dos Remédios, cuja pia batismal de calcário vermelho está exposta na Catedral. Na entrada da cidade, há uma estátua homenageando o filho ilustre, que viveu ali até os 14 anos, quando ingressou no noviciado em Coimbra. Cinco anos depois, partiu para catequizar os nativos da nova colônia portuguesa e nunca mais voltou. Acabou entrando na história como Apóstolo do Brasil, um dos fundadores da cidade de São Paulo, e foi canonizado pelo papa Francisco em 2014.
Praias de areia negra
Em Puerto de La Cruz, a grande atração é o Lago Martiánez, complexo de jardins e piscinas com água do mar, resultado de um projeto de renovação costeira, que se inseriu harmonicamente no meio ambiente da ilha. Ao lado do Lago Martiánez, há uma praia de areia negra com o mesmo nome. Aliás, praticamente todas as praias de Tenerife são de areia preta, de origem vulcânica.
A única exceção é a Playa Las Teresitas, em Santa Cruz de Tenerife. Isso porque, na década de 1970, os 1,5 mil metros de areia vulcânica foram cobertos por areia clara retirada do deserto do Saara, operação facilitada pela proximidade geográfica, já que Tenerife está a menos de cem quilômetros da costa africana. Com razão, é considerada a melhor e mais bela praia da ilha.
Uma das mais curiosas atrações naturais de Tenerife é um dragoeiro, planta da família dos cactus existente somente nas ilhas daquela região do Atlântico. Na cidadezinha de Icod de Los Vinos, há um exemplar conhecido como "drago milenar", pois, pela quantidade de suas ramificações, acredita-se que tenha mais de mil anos. A seiva vermelha que brota do caule do dragoeiro quando cortado faz com que os canarinos se refiram a ela como "a árvore que chora sangue".
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