Por Antônio Pozzer, especial
No balcão da locadora de carros, no aeroporto de Lisboa, recebemos a informação meio como uma bomba: "Carros locados na Europa não podem atravessar para o Marrocos" – informação esta que não constava de nenhum dos blogs e dos sites que havíamos pesquisado para montar o roteiro.
Estávamos em um grupo de quatro pessoas: eu, minha esposa, Márcia, nosso caçula, Rodrigo, e Adriana, a namorada do filho mais velho, Eduardo, que não tinha podido viajar por motivos de trabalho. Acabamos optando por deixar o carro no porto de Algeciras (Espanha) e locar outro no Marrocos. A travessia de ferry é de aproximadamente duas horas, em uma embarcação confortável e moderna, onde já são feitos os procedimentos de imigração no país (não é necessário visto para brasileiros).
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Já em Tanger, tivemos o primeiro contato com este outro mundo: a cacofonia das ruas, as vielas estreitas, o contraste entre a parte moderna e ocidentalizada e as medinas, centros históricos parados no tempo. Ficamos no Hotel Continental, dentro da medina, cujo acesso para o estacionamento desafia a habilidade de qualquer motorista, mas com uma vista matadora da avenida beira-mar e do estreito de Gibraltar. Pelas fotos de celebridades, políticos e habitués do jet-set internacional que enfeitam as paredes, pode-se ter uma amostra do glamour de outras épocas – hoje bem diminuído devido à concorrência das grandes redes hoteleiras e modernas que circundam as cidades.
Este é um dos primeiros pontos a destacar no Marrocos – há uma grande oferta de acomodações para todos os gostos, desde hotéis cinco estrelas até acomodações bem econômicas. No entanto, a grande experiência é se hospedar nos riads (pelo menos em alguma etapa da viagem): casas tradicionais marroquinas voltadas à hospedagem de turistas.
Geralmente, pelo exterior não se tem ideia do que vai se encontrar, pois a maioria dos riads está localizada dentro das medinas, e o acesso é por vielas estreitas e curvas, até se chegar à porta. Quando esta se abre, seus olhos se deslumbram com casas que apresentam a essência da arquitetura marroquina, com todos os seus detalhes – azulejos multicoloridos, jardins internos amplos e convidativos e terraços que descortinam vistas encantadoras.
Geralmente, os riads são conduzidos pelos proprietários, o que faz com que o acolhimento seja muito caloroso e simpático. Você realmente sente-se um hóspede daquela família, mantendo a privacidade e o conforto que se espera de um bom hotel. Junte-se a isso o fator localização, dentro das medinas, o que lhe possibilita acessar quase todos os pontos de interesse caminhando, e você se convencerá de ser esta a opção mais acertada.
Embora as línguas oficiais sejam o árabe e o berbere (falado em três dialetos), não é difícil se comunicar em espanhol (principalmente ao norte) ou em inglês ou francês, devido à forte influência europeia ao longo da história do país.
As rodovias são muito boas e bem sinalizadas, e a circulação de carro é bem tranquila, o que nos encorajou a planejar este roteiro. Vale lembrar apenas que, nos centros urbanos, é aconselhável ter a atenção redobrada, pois os marroquinos não são muito adeptos do respeito às regras de trânsito. A religião predominante é o islamismo (99% da população é muçulmana), e o sistema político é uma monarquia constitucional, com Parlamento eleito. Entretanto, o rei é o chefe do governo, o que amplia seus poderes (diferentemente das monarquias europeias).
Chefchaouen, a cidade azul
Em Tanger, conhecemos a medina com seus souks (mercados), a antiga kasbah (fortaleza), as praças Petit Socco (dentro da medina) e Grand Socco (belíssima, com uma fonte cercada de palmeiras), que adorna a entrada da medina e faz o limite entre a parte moderna da cidade e as muralhas do passado. Após esta aclimatação, estávamos prontos para iniciar a aventura.
Pegamos o carro e partimos em direção ao sul, com destino a Chefchaouen (ou Xexuão), a 115 quilômetros – já aí, aprendemos que, apesar das distâncias não serem muito grandes, o tempo para percorrê-las é bem maior, devido ao trânsito e à sinuosidade das estradas. Chegamos ao destino após duas horas e meia de viagem.
Chefchaouen é uma das cidades mais lindas do Marrocos – encravada no meio das montanhas, sua simpática medina se destaca pela característica de todas as casas serem pintadas em tons de azul vibrantes, contrastando com os telhados de terracota (influência andaluza), o que confere um visual onírico. Passamos horas agradáveis ali, apesar de termos chegado com chuva, indo e vindo pelo emaranhado de vielas que levavam sempre para a bela praça central e sua Kasbah restaurada.
Meknés, cidade imperial
Seguindo viagem, nossa próxima parada seria Meknés, uma das quatro cidades imperiais (ao lado de Fez, Marrakesh e Rabat, a atual capital), a 200 quilômetros de distância. Mas, no caminho (seguindo pela N13), 30 quilômetros antes de chegar, há uma joia imperdível: o sítio arqueológico de Volubilis, antiga cidade romana extremamente bem preservada e Patrimônio Mundial da Unesco desde 1997. As ruínas impressionam por sua grandiosidade, permitindo que se aprecie os detalhes arquitetônicos e até mosaicos completos que se mantêm conservados. Logo ao lado, a pitoresca cidade branca de Moulay Idriss, equilibrada sobre duas colinas verdes, completa este cenário histórico e inusitado.
Revigorados com este bônus, chegamos ao entardecer em Meknés. Por ser sexta-feira, o dia sagrado dos muçulmanos, encontramos a medina já no encerramento das atividades, mas conseguimos apreciar a bela arquitetura local, em especial o Portão Bab-al-Mansour, o mais grandioso dos portões imperiais marroquinos. Nos deliciamos no Le Gout de Meknés, um ótimo restaurante cujo proprietário, Mohammed, nos deu uma demonstração da culinária marroquinas: tagines, cuscuz, brochettes e o sempre presente chá de hortelã, sinal de hospitalidade em todos os lugares pelos quais passamos.
Fez e o "labirinto dos labirintos"
Vizinha de Meknés, a 65 quilômetros, encontra-se Fez, lar da maior e mais famosa medina do Marrocos, conhecida como "o labirinto dos labirintos" – confesso que estava um pouco apreensivo, pois já havia lido que mapas são completamente inúteis para ajudar na localização. A medina é realmente imensa.
Iniciamos a incursão no labirinto, obedecendo a organização básica de todas as medinas: na zona mais periférica, estão os negócios, digamos assim, menos agradáveis ao olfato – curtumes, comércio de couro, depois madeira e metal. Em direção à parte central, estão alimentos e especiarias e, finalmente, tecidos e joias, até chegar à praça central e à Grande Mesquita.
Nas próximas três a quatro horas, nos perdemos e nos encontramos, deixando-nos inebriar pela profusão de cores, sons, aromas daquele mundo impressionante dos souks: ruas apinhadas de gente indo e vindo, dividindo o espaço com jumentos e cavalos carregados, mercadorias de todos os tipos, tecidos, quinquilharias, especiarias, tapetes, alimentos, e muita, muita barganha. Nem pense em comprar nada pelo preço oferecido – primeiro, porque você conseguirá reduzi-lo em pelo menos 60% sem muito esforço. Segundo, porque é uma ofensa ao vendedor não pechinchar – afinal, faz parte da cultura marroquina a arte da negociação.
Ao final, quando decidimos que já era o bastante, e sem a menor ideia de onde estávamos, apelei para o GPS do celular (lembrava o nome da rua onde havia estacionado o carro) e voilà: em 20 minutos, estávamos junto a ele.
Merzouga, o deserto e a neve
De Fez, nossa próxima meta era Merzouga, às margens do Saara ocidental, atravessando a cadeia de montanhas do Médio Atlas, em um trajeto de 464 quilômetros. Nos preparamos para uma etapa cansativa, mas, ao iniciarmos a travessia das montanhas, fomos surpreendidos por uma paisagem totalmente inesperada: campos e morros brancos de neve, a estrada apinhada de carros no acostamento com uma multidão que acorreu das imediações para brincar na neve, esquiar, andar de trenó.
Por alguns quilômetros curtimos esse cenário, também fazendo paradas em alguns lugares mais convidativos. Sem dúvida, esta surpresa amenizou muito o cansaço das sete horas de viagem, de forma que chegamos a Merzouga com a alma leve.
Fizemos um tour guiados por Ali, um nativo berbere, conhecendo os povoados e a cultura deste povo originalmente nômade. A tecnologia dos oásis, que drenam água de fontes às vezes distantes e garantem as plantações de todas as famílias do povoado; as técnicas de construção de casas utilizando somente a argila, incompreensível para nós, mas eficaz em uma latitude onde a chuva quase inexiste; a recepção em tendas de famílias nômades, sempre com o delicioso chá de menta a nos acolher – sem dúvida, tudo isso fez-nos pensar como o ser humano é capaz de confrontar os mais variados obstáculos.
No meio da tarde, partimos montados em camelos rumo ao deserto, onde passamos a noite em um acampamento à moda berbere.
Não há palavras para descrever o impacto do pôr do sol sobre aquele mar de dunas, passando por todas as gamas do amarelo ao alaranjado mais escuro. Ou o silêncio que se impõe, mostrando a agressão do ruído diário com o qual estamos acostumados. Ou, após um jantar digno de um restaurante e algum tempo de músicas berberes tocadas ao redor de uma fogueira, a contemplação da imensidão estrelada de um céu sem competição de luzes artificiais. Enlevo puro... e muito frio, diga-se de passagem. Ainda com a beleza da aurora a dançar na retina, fizemos o caminho de volta certos de que este foi o ponto alto desta jornada.
Rota das Mil Kasbahs
Seguindo o roteiro, rumamos para Skoura, pela chamada Rota das Mil Kasbahs. No caminho, um pequeno desvio nos levou até as gargantas de Dades, um imponente desfiladeiro cortado pela estrada – vale a pena o desvio (menos de 10 quilômetros) para apreciar esta maravilha da natureza. Skoura desponta como uma mancha verde em meio à paisagem desértica, fazendo jus ao título de "Oásis das 300 mil Palmeiras". Cercado por Kasbahs históricas, inclusive a de Amridil, que ilustra a cédula de 50 dihrans (moeda marroquina), o oásis é Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
Logo adiante, passamos por Ouarzazate, sede dos quatro maiores estúdios de cinema do Marrocos. E, a 32 quilômetros, uma atração imperdível: Ait Benhaddou, o mais bonito ksar (castelo) do Marrocos, construído em 757 d.C. e locação de filmes como Gladiador e Lawrence da Arábia e da série Game of Thrones.
A cosmopolita Marrakesh
Após atravessar a cadeia do Alto Atlas (mais neve), chegamos a Marrakesh – uma das mais cosmopolitas cidades do Marrocos. Atrações ali não faltam, a começar pelo belíssimo Jardim Majorelle, obra do pintor do mesmo nome e onde repousam as cinzas de Yves Saint Laurent, que comprou o local em 1980.
Monumentos como a Madrassa Ben Youssef (universidade islâmica), os palácios Bahia e El Badi, as tumbas saadianas encantam e são exemplo do estilo arquitetônico marroquino.
A mesquita Koutoubia impressiona com seu minarete de 69 metros (equivalente à altura de Notre Dame, em Paris). Os souks reproduzem a mesma balbúrdia já vista em outra paragens. Mas, aqui, sem dúvida, a grande experiência antropológica é a enorme praça Djeema-el-Fna, onde tudo acontece: barracas que vendem especiarias, restaurantes com todos os tipos de comida, músicos, encantadores de serpente, malabaristas e mágicos, locais e turistas, numa confusa, alegre e incomparável celebração à vida. Não há como não se deixar levar e esquecer do tempo neste caleidoscópio humano!
Casablanca, o centro econômico
De Marrakesh, 574 quilômetros nos separavam do ponto inicial deste tour. Quase no meio do caminho, a mítica Casablanca, hoje maior cidade e centro econômico do Marrocos e lar da mesquita de Hassan II, segunda maior do mundo (depois da mesquita de Meca). Sua grandiosidade impressiona (na nave principal, cabem 25 mil pessoas), principalmente pelo contraste com a leveza e a delicadeza dos detalhes arquitetônicos e decoração, típicos do estilo marroquino. Completando o loop, voltamos a Tanger, passando antes pelas Grutas de Hércules, maravilha escavada na pedra pelo mar.
Estávamos gratificados e maravilhados por uma viagem que nos permitiu conhecer um mosaico variado e surpreendente das belezas do Marrocos mas, acima de tudo, nos fez vivenciar uma cultura única e envolvente que reafirma a beleza da diversidade!