Com o calor do período de verão e a correria do dia a dia, muita gente chega a sonhar em fugir da loucura das grandes cidades e comprar uma casinha na praia em busca de sossego. Nos piores momentos da pandemia de covid-19, os municípios do Litoral Norte serviram de refúgio para muitas pessoas que buscavam ambientes com menor aglomeração e com menos risco de transmissão.
Com o avanço das possibilidades do trabalho remoto, a ideia de viver na praia foi ficando cada vez mais viável para diferentes públicos. Se antes morar na praia era um luxo da vida de aposentado, agora passou a ser uma realidade que não tem mais idade.
Essa mudança de perfil foi constatada até nas imobiliárias. Proprietário da Capão do Imóvel, o corretor Wilson Grebien estima que de 5 a 10 mil pessoas vieram residir em Capão da Canoa durante o período da pandemia.
— O pessoal acabou modificando o pensamento. Pode vir trabalhar em Capão e, caso tiver que voltar, por exemplo, para a Grande Porto Alegre, em duas horas já está lá. Isso acabou fazendo com que muitos viessem morar aqui na praia. Aumentou muito mesmo, a gente nunca vendeu tanto em outros anos como na pandemia — aponta.
Segundo Grebien, 2022 foi o ano de maior número de vendas na empresa. Ele ainda afirma que o interesse em morar na praia ainda vai seguir nos próximos anos, já que há clientes preparando a mudança para os próximos dois a cinco anos.
Aumento populacional em Imbé
O aumento da população no Litoral também está no radar das prefeituras. Em Imbé, que atualmente conta com 27 mil habitantes, houve um crescimento de 2,2 mil pessoas de 2021 a 2022, conforme o censo municipal realizado para identificar o perfil dos moradores da cidade.
O mesmo levantamento registrou uma elevação de 3,8 mil indivíduos entre 2019 e 2021. A nível de comparação, o município contava com 2,7 mil moradores quando se emancipou em 1988. Para o prefeito Luis Henrique Vedovato, a elevação do número de habitantes é uma tendência que deve permanecer.
—A região do Litoral Norte cresceu em população, segundo o que a gente escuta, e o censo do IBGE vai poder comprovar — salienta.
A gestão municipal diz que está preparada para esse fenômeno e que já vinha investindo na oferta de serviços para acompanhar o crescimento de moradores e para comportar o aumento durante os meses mais movimentados do ano. Segundo o prefeito, a estimativa é de que Imbé tenha chegado a 270 mil pessoas durante o Ano-Novo, ou seja, 10 vezes mais do que o número atual de habitantes.
—Esse evento de procura da moradia com mais tranquilidade, que é no Litoral (que se tornou um local mais seguro para se viver), é uma tendência também nos outros municípios — avalia.
De acordo com dados preliminares do Censo 2022 divulgados nesta semana pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Imbé foi a segunda cidade gaúcha com maior crescimento populacional entre 2010 (ano do penúltimo Censo) e 2022, com um crescimento de 53% nos últimos 12 anos.
Outras cidades do Litoral Norte seguem a tendência: Capão da Canoa em 4º lugar, com aumento de 47,55%; Arroio do Sal em 5º, com variação de 43,1% e Balneário Pinhal em 8º, com 36,06%. Na mesma lista estão Cidreira e Xangri-Lá, em 12º e 13º, com crescimento de 32,31% e 30,42% da população.
Em busca de tranquilidade
Foi a calmaria da praia que motivou Clarissa Oliveira Behs, 53 anos, a mudar de vez para Mariluz, balneário de Imbé. A antiga moradora de Novo Hamburgo e empresária do ramo de molas decidiu deixar o marido vivendo no Vale do Sinos e passou a tocar suas tarefas no setor financeiro da empresa do casal acompanhada de uma vista para o mar.
Aproveitando a estrutura da casa da família — que veraneava no local há mais de duas décadas—, Clarissa montou uma mesa de escritório e construiu um anexo com direito a closet, banheira e sacada para a beira da praia.
— Rende muito mais, porque na empresa a gente trabalha com molas de caminhão e é muito barulho, mesmo com a minha sala fechada. Descobri que todos os meus vizinhos vieram morar para cá, então, não me sinto sozinha. E não penso em voltar. Vou uma vez por mês para a empresa — conta ela, sentada na varanda de casa.
Apaixonada por praia, Clarissa se instalou em definitivo no Litoral desde março de 2021. Ela brinca que o relacionamento “a distância” melhorou até o casamento de 33 anos.
— Deu um “up” na relação! Daí, quando um vem, é novidade — explica ela, ao mencionar que o esposo a visita todos os finais de semana e também é fã de praia.
Ficar sozinha foi importante para Clarissa em um momento difícil de sua vida. Após a morte da mãe, em novembro de 2021, as horas no silêncio do Litoral ajudaram a conviver com o luto:
— Se quisesse chorar, eu chorava. Lá na cidade, tudo me lembrava dela. Aqui é um refúgio, eu chamo de SPA, porque renova as energias e o ar é diferente.
O período de verão, no entanto, muda o cenário tranquilo. Se, durante o inverno, a moradora gosta de curtir a própria companhia e ficar quietinha, com o calor, os quartos passam a ser ocupados pelos parentes e amigos. O que não é um problema para Clarissa, que também tem um lado festeiro e que adora um show de sertanejo.
— Aqui eu já levanto, dou bom dia, a gente se berra, uma está escutando música, a outra está dançando lá. É outra coisa — conta.
Vaidosa e preocupada com a saúde, Clarissa criou um hábito do qual não abre mão nas areias de Mariluz. Todos os dias, mesmo com frio ou chuva, pega a bicicleta e vai pedalar durante a manhã.
— Eu pedalo todo dia. Dá 12 quilômetros (o trajeto), e eu me sinto muito bem. O dia em que eu não faço, parece que nada flui. Tem que ter uma atividade física — enfatiza.
Pensando em planos para o futuro, a moradora é enfática ao dizer que não pensa em voltar à vida antiga.
— O futuro é parar (de trabalhar) e vir morar na praia! — diz ela ao afirmar que espera o marido se aposentar para ficar de vez ouvindo o som das ondas do mar.
Solidão é desafio
Atuando na área do Marketing Digital, Márcio Nilles de Oliveira, 28 anos, conta que a facilidade de trabalhar de qualquer lugar desde 2020 permitiu que ele fosse para os locais em que mais se identifica:
— Desde o início da pandemia venho aproveitando a flexibilidade do trabalho remoto para ficar em cidades que atendem mais o interesse de onde quero morar em vez de uma necessidade do trabalho.
Márcio trocou o clima da Serra, em Bento Gonçalves, pela vida na praia, em Tramandaí. Chegando em abril de 2022, ele brinca que já teve que enfrentar o inverno logo de cara no Litoral, mas confessa que o desafio mesmo veio com o receio de ficar sozinho em uma cidade diferente.
— De início bate uma solidão, mas, depois você se reinventa, encontra amigos próximos, atividades e preenche isso. Você tem que criar uma rotina de sair de casa, ter círculos, ou acaba ficando preso no quarto — ressalta.
A praia segue no horizonte do morador, mas ele já está traçando planos para mudar o destino em breve. Dessa vez, Márcio quer ir para Florianópolis, em Santa Catarina. E não pretende parar por aí:
— Planejo conhecer mais o Brasil também daqui pra frente. Meu sonho sempre foi ter uma experiência de morar na Bahia por um tempo.
Uma hora de surfe antes do expediente
Nos primeiros sinais da pandemia, a família de Fabrício Marmitt, 42 anos, fez as malas e viajou de Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, para Xangri-Lá. Desde 17 de março de 2020, o corretor de imóveis, a psicóloga Michelle Bertussi Raabe, 39, e os filhos do casal, Conrado, 14, e Maitê, oito, não saíram mais do Litoral.
Para convencer todo mundo a ficar de vez, Fabrício conta que adotou uma estratégia:
— Eles sempre foram bem cachorreiros. Isso foi uma das armas que usei para ficar aqui. O Conrado queria um golden retriever. Aí eu disse “se a gente continuar na praia, a gente pega”. Daí eles se olharam e foi! — revela.
Batizado de Athos, o cão da família é considerado “um filho da pandemia” e hoje já tem a companhia de mais três. Mesmo feliz em poder ter os pets, Michelle tinha ressalvas sobre morar na praia, principalmente no período de frio.
— Eu sempre veraneei aqui e gostei muito, mas o meu receio era o inverno, que foi justamente o que superou as minhas expectativas, porque foi quando eu consegui me conectar com a calmaria. Nós tínhamos uma vida muito ativa lá — comenta.
Se em Santa Cruz do Sul, o ritmo da cultura alemã é levantar cedo e já começar a trabalhar, na praia, o pessoal é bem mais desacelerado e tranquilo, o que fez com que a rotina e o estilo de vida passassem por modificações. Michelle, por exemplo, confessa que desapegou de uma grande quantidade de suas roupas, porque não via mais necessidade em manter.
Meu receio era o inverno, que foi justamente o que superou as minhas expectativas, porque foi quando eu consegui me conectar com a calmaria.
MICHELLE BERTUSSI RAABE
Psicóloga de Santa Cruz do Sul, que vive em Xangri-Lá desde o início da pandemia
— A gente morava em Santa Cruz do Sul, que é uma cidade ótima também. Só falta o mar para ser perfeito — brinca Fabrício, que também é professor de jiu-jítsu e presidente da Associação de Surfe de Xangri-Lá.
A paixão pelo surfe já fazia com que ele viesse ao Litoral em dezembro e só fosse embora em março. Agora, ele pode viver o sonho de pegar uma onda antes de iniciar o expediente.
— Acordo cedo e vou surfar. Às 7h30min, volto para trabalhar — diz ele.
Fabrício relata que recebeu suporte da empresa onde trabalha para fazer a transição e hoje amplia o mercado buscando novos clientes na região, o que trouxe um ótimo retorno financeiro.
Já Michelle, que estava acostumada a atender os pacientes de fora do Estado e do país pela internet antes da covid-19, conseguiu migrar os pacientes moradores de Santa Cruz do Sul para o online e só vai uma vez por mês ao consultório na antiga cidade, onde tem fila de espera para consultas presenciais. Para ela, a mudança de casa foi essencial para que pudesse ficar mais perto dos filhos.
— Acho que esse modo litoral trouxe mais conexão e união para a nossa família. Teve um momento em Santa Cruz em que o meu filho disse ‘mãe, eu não te vejo mais, quem faz tudo com a gente é o pai’. Daí, eu percebi o quão importante foi estar aqui para eu estar junto com eles — afirma a psicóloga.
Conrado e Maitê também tiveram que passar por adaptações. Segundo a mãe, a pequena logo fez uma rede de amigos no primeiro ano na nova escola. O mais velho, porém, demorou mais um tempo para se enturmar e ainda mantém o contato com os amigos da outra cidade pela internet. Já o casal conta que fez novos amigos na praia, mas mantém o vínculo com os de longa data e gosta de recebê-los no Litoral.
Completando quase três anos após a mudança, a família está traçando novos planos. Nesse verão, os quatro voltaram para a casa onde ficam o padrasto e a mãe de Michelle, para manter seu imóvel alugado nos próximos meses. Com terreno comprado ainda mais próximo do mar — que Fabrício tanto ama—, a ideia agora é construir uma nova casa para seguir no “modo litoral” daqui para frente.
— Vamos manter alugada, porque queremos construir uma na beira-mar. Como gosto muito da praia, então quero ficar de cara para o gol! — enfatiza Fabrício, sorrindo.