As plataformas de pesca do litoral gaúcho sobrevivem graças a associações ou por meio da iniciativa privada e têm nos colaboradores e sócios a única forma de custeio. Nenhuma das três estruturas no Estado é concessão pública.
Nesta quarta-feira (27), GZH visitou os locais, conversou com usuários e com as administrações — ouviu boas histórias, mas também o temor de quem vê a conta não fechar no fim do mês.
Confira a seguir como está a mais antiga das construções, em Atlântida, conheça a “rica” e bem estruturada plataforma de Tramandaí e se surpreenda com a maior de todas, decorada com capricho, em Cidreira.
Em Atlântida, reforma deve custar R$ 1,5 milhão
No grupo de WhatsApp Alunos do Tio Chico, cerca de duas dezenas de pescadores combinam encontros e trocam mensagens para não perderem o laço fora da temporada. Tio Chico, porém, não foi adicionado.
— Eu soube que criaram esse grupo aí — desdenha, em tom de brincadeira, Francisco Wilmar dos Santos, 89 anos.
Bem humorado e com assiduidade quase diária, Tio Chico é uma "entidade" da Associação dos Usuários da Plataforma de Atlântida (Asuplama). O mais velho dos registrados é Olívio Taffarel, que, com 95 anos, raramente tem pescado nos últimos meses para evitar se expor no período de pandemia.
O local que, informalmente, elegeu o idoso como professor é a "vovó" das plataformas marítimas do Estado. Inaugurada em agosto de 1970, fica entre as guaritas 86 e 87, em uma área nobre do balneário de Atlântida, município de Xangri-lá.
A idade e as características da construção, contudo, deixam esse glamour em segundo plano: impactada pelas inúmeras ressacas que atingiram a costa nos 50 anos de atividade, teve de ser reconstruída mais de uma vez. Um ponto de aproximadamente 80 metros cedeu completamente e desapareceu nas águas em 1997. Por isso, hoje ela é a única das três que não tem a forma de “T”.
Com a queda de muretas em 2019 e 2020, mais R$ 300 mil foram adicionados às dívidas. O presidente da Asuplama, José Luís Rodrigues Rabadan, afirma que a última parcela da reforma referente a 2019 foi paga há poucos dias. A mais recente ainda tem prestações vencendo por mais um ano. Projetada para durar 30 anos, a obra que já ultrapassou o prazo inicial tem um plano ousado.
— O ideal para sobreviver aos próximos anos é cravar em torno de 10 pilares, obra que tinha que começar já neste ano. Assim melhoria o travamento da estrutura — diz.
O projeto tem custo estimado de R$ 1,5 milhão, segundo Rabadan, que levará as informações à prefeitura, em busca de apoio. Parcerias com condomínios são procuradas para aumentar o caixa e proporcionar descontos aos moradores dos residenciais.
— Enquanto isso, é rifa em cima de rifa. Faço um apelo aos diretores de grandes empresas, a gente não pode deixar cair nossa plataforma — reitera o presidente.
Há vistorias periódicas da Marinha. E um dos diretores da plataforma é um engenheiro civil. Ambos examinam a estrutura e, salvo nos casos de ressaca muito forte, não há risco de queda. A plataforma de Atlântida é mais baixa que as outras, por isso é a única atingida pelas ondas.
Atualmente, a plataforma de 350 metros pouco encanta quem repara no piso de pintura desgastada, e na recepção com portões enferrujados. Há rachaduras em parte do concreto e as áreas para lavar peixes ou iscas têm espaço reduzido. Há apenas cinco funcionários, e por isso o serviço de faxina é realizado pelos arrendatários do restaurante.
A mensalidade, no valor de R$ 100, é paga hoje por 220 associados. Esse número já alcançou 1,8 mil no auge, nas primeiras duas décadas de vida da construção.
A vista, em um terraço no extremo norte, compensa quem busca as belezas naturais e deixa de lado as reformas aparentes. Para visitar, o ingresso custa R$ 8 e dá direito a duas horas de permanência.
— Trabalhei a noite toda e vim direto para cá, desestressar — elogia o segurança Cássio Derlam, 41 anos.
Em 1995, duas horas de “luta” na plataforma terminaram na captura de uma arraia de mais de cem quilos. Contado como história de pescador, o fato é chancelado por sócios que participaram da ação.
— Descemos para a praia e ficamos lutando até quase na frente do Bali Hai (restaurante na região). O quiosque de madeira do Carlos Biguá tinha uma balança de chão, e nela a arraia pesou por volta de 125 quilos — conta, em detalhes para dar credibilidade, o representante comercial Thiago Gerlach Barata Silva, 45 anos.
O diretor encerra com uma provocação: diz que vai convocar arquitetos para criar um projeto inovador, sustentável, e que ofereça à iniciativa privada espaços para serem explorados comercialmente, como lojas, restaurante panorâmico e até um embarcadouro.
Tramandaí tem maior receita e melhor estrutura
Nascida a partir da falência de um projeto comercial — em 1973, os cotistas criaram uma sociedade e finalizaram a obra —, a plataforma de Tramandaí é hoje mais do que um clube de pesca, define o presidente da instituição, Hélio Cláudio Decamillis, 82 anos:
— Isso é um clube social, para reunir a família, e esse é nosso maior objetivo.
Com 1,2 mil sócios, o local mostra força. Na área do espigão, como é chamada a passarela central da estrutura, pequenas construções são reservadas a mensalistas. No mesmo corredor, se chega ao maior restaurante das três plataformas. Há bancos de concreto em boa parte dos 365 metros de extensão e uma série de pias para manusear os pescados. As cores, azul e amarelo se mantêm vivas, mesmo em uma área diretamente atingida pela maresia.
Enquanto a reportagem esteve no local, funcionários foram vistos limpando banheiros e varrendo o piso. Com a alta adesão de associados, o movimento também foi o maior das três estruturas à beira-mar, localizada próximo a guarita 152.
Com camisa de estampa igual à do marido e semblante tranquilo, a comerciante aposentada Magda Fraga, 71 anos, iscava sardinha nos anzóis. Ela escolheu um dos braços do “T” para pescar — a área tem em torno de 50 metros, semelhante à de Cidreira, mas menor em relação à de Atlântida.
— Aqui, eles cuidam muito. Temos todo o conforto, tanto que a gente tem casa em Nova Tramandaí e as vezes não sai nem para comer — diz.
Pescadora desde a infância, relembra do dia em que ficou com lama até o joelho:
— Ih, já passei por cada pescaria. Essas de lagoa a gente suja tudo.
O esposo, Renato Fraga, 72 anos, afirma que o preço pago para usufruir dos confortos da plataforma valem o investimento.
— Isso é uma terapia. Se gasta mais mantendo o título do que se comprasse peixe, mas vale muito — define.
Novos membros precisam pagar R$ 900, à vista, para adquirir a joia do clube, que dá direito ainda a uso da sede campestre. Se for indicado por outro sócio, o valor cai para um terço. A mensalidade é de R$ 90 — pessoas que comprovem ganhar no máximo dois salários mínimos pagam 50% do total. Visitantes pagam R$ 5 por meia hora de permanência.
O presidente afirma ter de realizar reparos recorrentes devido a chuvas e umidade vinda do mar, mas diz não ter planos de expansão:
— O dinheiro nós usamos para manter bem cuidado. E nada seria assim se não fossem os nossos excelentes funcionários.
Ao todo, 20 funcionários atuam na plataforma.
Cidreira tem a maior em extensão
Enio Dewes, 74 anos, chega vagarosamente à plataforma de Cidreira, estrutura que avança sobre a faixa de areia do balneário de Salinas. Pé por pé, carrega uma caixa térmica, balde e uma vara com molinete. O ritual se repete há 21 anos.
— Já subo ralhando e sendo ralhado — diz, em um mau humor inverossímil, o microempresário aposentado.
Com 500 metros de extensão, a estrutura imponente no balneário de Salinas, na altura da guarita 173, ocupa quase toda a faixa de areia, até próximo de uma duna que separa a praia da calçada. Suntuosa à distância, demonstra um charme que conquista na chegada. O corredor de acesso expõe mais de 20 vasos ornamentais, que resguardam plantas ainda pouco vistosas.
A fachada lembra a de uma residência de veraneio, com janelas brancas de base reta e topo arredondado. O primeiro ladrilho exibe pétalas coloridas, obra de um dos trabalhadores do local, administrado por uma empresa com escritório em Porto Alegre. Os banheiros têm lajotas coloridas, mesmo estilo dos vistos na frente do prédio.
Paulo Roberto de Miranda, 55 anos, dedicou metade da vida ao trabalho de “clínico geral”, como brinca, sobre ser o faz-tudo da estrutura.
— Nos anos 80, tinha aquelas miraguaias (espécie de peixe gigante), coisa mais linda. Agora, os barcos de arrastão acabaram com isso — lamenta.
Ele se mostra saudosista ao apontar para a sala de troféus, área interna de maior beleza vista em todas as plataformas. Se hoje não se pesca mais como antigamente, como denota Miranda, parte da história das batalhas no mar são vistas nesse ponto da construção: moreia, carpa-cabeçuda, cobra do mar, peixe-espada e outros cerca de 50 animais foram conservados em um processo de taxidermia. Têm a identificação e alguns até exibem a data em que foram pescados.
As primeiras vigas foram instaladas no local em 1983, e no mesmo ano os pescadores iniciaram a ocupação do espaço. Os trabalhos levaram nove anos para serem concluídos.
Não há restaurante no local, mas sim duas lancherias. O presidente da plataforma, Jone de Lima, 76 anos, afirma que o modelo de negócio é mais viável para a região. Para o futuro, afirma que investirá em automação na portaria.
— Temos um trabalho de conservação permanente. A automação na portaria é um projeto, além de outras melhorias. Com sucesso junto aos sócios, brevemente será implementado — reforça.
A mensalidade paga é cobrada por ano: R$ 600 nos primeiros 12 meses e R$ 440 após a renovação — é a mais barata das três áreas de pesca. Atualmente, 980 pessoas pagam a anuidade — o local chegou a ter mais de 2 mil, e acompanha a queda no número de associados das “concorrentes” mais ao norte. Visitantes pagam R$ 5 por meia hora de permanência.
Em todos os locais foi exigido o uso da máscara para acesso. Dentro da estrutura, a maioria dos visitantes manteve o acessório, com exceções.