Por Jean Segata
Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, pesquisador das relações humano-animais
A covid-19 tem produzido uma pandemia de incertezas. A saúde e o seu futuro é uma delas. Futuro não é assunto de adivinhação, mas de projeto. E eu proponho um: desmilitarizar a saúde.
O vírus é um inimigo invisível, um terrorista que deve ser combatido. É preciso se armar, montar campanha, enfrentar, lutar, vencer. Temos ouvido expressões como essas a todo momento, e não há nada de novo nisso. Desde os tempos agudos da febre amarela e de outras doenças que grassavam no Brasil e no mundo afora, a gramática militar foi instalada. E ela ainda dura. Faz mais de cem anos que a saúde tem sido convertida em um assunto de guerra e de segurança, ao invés de cuidado e da inclusão. Há efeitos muito negativos nesse tipo de enquadramento.
Vírus e bactérias são alguns dos agentes patológicos mais comuns, mas eles são invisíveis aos nossos olhos. Então, alguns animais e vetores funcionam com uma espécie de lente de aumento – eles materializam ou medeiam sua presença. Por exemplo, você não vê o vírus da dengue por aí, mas pode ver o mosquito Aedes aegypti. Então, nessa lógica de guerra, o mosquito se torna o alvo porque ele é, digamos assim, o quartel geral do vírus – o território do inimigo, que deve ser atacado. E nós temos atacado com muito veneno, matando animais e alterando ambientes e climas.
Também há situações, como no caso da covid-19 ou do HIV-aids, que o vírus chega a nós diretamente por meio de um outro humano.
Nesse caso, esse outro passa a ser visto como o território inimigo. Não é por menos que se naturalizam ataques de xenofobia, sugerindo que a covid-19 seja chinesa ou que alguns migrantes e refugiados ofereçam ameaça. Também resiste ainda a homofobia em proibir que homossexuais doem sangue. Desde mais de três décadas, recai sobre estes a acusação de serem um risco para a transmissão do HIV-aids. Sem contar no histórico racismo ambiental estruturado de quem acusa a população pobre de ser suja e contaminante, quando, na verdade, quase sempre é negado a ela, que vive nas comunidades mais periféricas, o direito fundamental de acesso à água e ao saneamento.
Sob a lógica militar, processos de atenção, que deveriam ser voltados a oferecer o bem estar comum, são transformados em guerras, com vencedores e vencidos. E os vencidos quase nunca são os patógenos, mas aquela grande parcela da população que ainda vive, lamentavelmente, em situação crônica de vulnerabilidade, desigualdade e injustiça social.
Finalmente, é preciso lembrar que nós, humanos, não estamos sozinhos no mundo. A vida é complexa. Vírus e fenômenos climáticos podem causar catástrofes que mostram que não estamos no controle – e não é com guerra que estaremos. A militarização é inimiga da vida. O futuro da saúde é uma relação de política e de paz com mundo, com os outros seres e ambientes e com nós mesmos.
Este artigo integra uma série de cinco textos nos quais, convidados por GZH, pesquisadores refletem sobre mudanças na sociedade pós-pandemia. Leia os demais: