Por Celso Gutfreind
Psicanalista e escritor, autor de “A Menina que Morava no Sino” (Physalis, 2020)
Fui convidado para um exercício fascinante e impossível: prever como as pessoas vão sair da pandemia do coronavírus, do ponto de vista psicológico e interpessoal. No quesito empatia, por exemplo.
O humor será fundamental. Contar com ele representa saúde mental, segundo poetas e psicanalistas. Então, sonhei com uma bola de cristal, mas não tive fé para adquiri-la. Continuo sem saber o que será. Para complicar, o meu trabalho vive entre o presente e o passado, limitando-se ao conhecimento deste para transformar aquele. Ok, o inconsciente inclui o futuro, mas, ao jogar na Mega Sena os números do meu sonho, eu nada ganhei. A não ser uma história.
Uma história que admiro é a autobiografia do Pedro Nava. Ele a chamou, erroneamente, de Baú de Ossos. Na verdade, guarda ali pedras preciosas. Drummond era seu fã, com razão e emoção. Nava escreve no esplendor da forma. Fora do baú, uma das preciosidades do seu conteúdo conta que a experiência é um farol virado para trás. O autor pode mandar muito bem na escrita, mas não facilitou o meu desafio.
Corte para o cinema. Isolado em casa, revejo O Peixe Grande, do Tim Burton. Uma história sobre as histórias de seu pai, fabulador de primeira. Um tratado sobre o poder da narratividade em nossas vidas. Detenho-me numa cena: pai e amigos, jovens ainda, encontram uma bruxa conhecida pela capacidade de adivinhar a cena de como será a morte de cada um. Concentro-me no seu método: ela olha o olhar dos meninos.
Aqui, sim, eu me encorajo para encarar o desafio da previsão. Como sairemos emocionalmente desta pandemia? Depende do olhar e do passado. Depende do quanto fomos olhados. Aqueles que entraram suficientemente acolhidos poderão sair melhor, de empatia e no resto. Quanto aos demais, tendem a repetir velhos hábitos. Lamento pensar assim, sem humor, mas um psicólogo também oferece o confronto com a realidade.
É como o trauma. Seus efeitos não costumam vir na primeira violência. Esta deixa uma marca silenciosa, que entrará em ebulição somente no próximo choque. O mesmo pode valer para a aprendizagem com a experiência. Aprende quem já pôde aprender. Ouve a empatia quem, um dia, contou com ela. Olha o próximo quem foi olhado, num tempo distante. E não seria pouco se saíssemos desta situação com o sentimento de que é fundamental investir na saúde materno-infantil, com políticas que promovam o vínculo e o olhar. Então, não haveria trauma com as crises e, sim, uma nova chance para sair delas com mais saúde.
Mas também é preciso que a psicologia construa algumas ilusões, no trabalho com a realidade. Que seja possível aguardar surpresas, já no final desta adversidade e não da próxima. Cultivar a esperança de que joias de filmes, livros e da vida surgem quando um novo encontro resgata almas entorpecidas e recoloca o farol no seu lugar. Então, o final da escuridão poderá surpreender com o recomeço de olhares quase extintos.
Este artigo integra uma série de cinco textos nos quais, convidados por GZH, pesquisadores refletem sobre mudanças na sociedade pós-pandemia. Leia os demais: