O presidente francês, Emmanuel Macron, foi um dos primeiros a usar o termo guerra para definir a pandemia do coronavírus. Depois, Donald Trump se autoproclamou “presidente em tempo de guerra”. E até o papa Francisco comparou os profissionais de saúde vítimas do coronavírus a soldados em… guerra.
Entende-se o uso da metáfora, a força da palavra e sua capacidade de unir populações e mobilizar esforços em torno de algo desconhecido, que nos ameaça e nos coloca dentro de casa. Mas, tendo experimentado, como repórter, o horror da guerra, com experiências no Líbano, na Líbia e no Iraque, posso garantir: por pior que seja a ameaça da covid-19, o maior desafio da nossa geração, não estamos em guerra.
Nossas residências não são bunkers nem abrigos antiaéreos, aqueles para os quais precisamos correr em apenas um minuto quando as sirenes começaram a tocar no alto dos morros, indicando que a cidade está sendo atacada. Mesmo em capitais europeias com as mais rígidas regras de isolamento social contra o coronavírus, pessoas podem sair de casa e ir ao mercado comprar comida sem a ameaça de um bombardeio. Na guerra, essa não é uma opção.
Não estamos sob bombas, que fazem tremer nosso prédio inteiro quando não o destroem totalmente nos tornando vítimas colaterais e fortuitas de interesses alheios. O isolamento, necessário nesta crise, nos permite ficar em casa, com mais ou menos conforto, mas sobretudo seguros. Nossos hospitais não estão sendo bombardeados, nossas crianças não estão sendo mortas indiscriminadamente por ordem de algum tirano ou grupo radical terrorista.
Médicos, enfermeiros e técnicos também não são soldados. Militares são treinados para matar. Profissionais de saúde são formados para salvar.
O que vivemos é grave, mas, definitivamente, não é uma guerra, como conhecem bem, infelizmente, as populações de Síria, Iêmen, israelenses e palestinos, e vários cidadãos africanos.
Dos mais antigos aos mais modernos conceitos das relações internacionais, dos manuais das escolas militares aos registros da História, todos têm em comum a máxima de que, na guerra, o objetivo é eliminar o maior número de inimigos, provocar dano fundamental ao adversário, abrir brechas em sua linha de frente e ocupar território.
O que estamos vivendo é uma crise de saúde global. Não uma guerra.
Governos e corporações costumam usar o termo “orçamento de guerra” enquanto não se fabricam “armas contra o vírus”. Mais uma vez entende-se a metáfora. Mas, ao usarmos termos bélicos, respaldamos a busca por soluções habituais de uma guerra: elegendo inimigos humanos ou nações, como a China, e não invisíveis, buscando estratégias normalmente adotadas em um conflito real, como recrudescimento fronteiras, a prisão de desobedientes, e colocando militares armados nas ruas. Ao aceitarmos o conceito, cedemos poder exagerado a governantes, como na Hungria e nas Filipinas, que em “tempos de guerra”, se imaginam acima das leis.
Esta é uma crise sem precedentes do século 21. Mas, como já vivida em outras épocas, uma tragédia de outra natureza, diferente de um conflito armado. Uma pandemia deve ser solucionada com pesquisa, planejamento, análises clínicas, testes, hospitais com respiradores e leitos suficientes para salvar pessoas, prevenção, solidariedade e, depois que tudo passar, educação em saúde, investimento em ciência, para que não se repita. Ou, como provavelmente outro vírus vai aparecer no futuro, porque assim caminha a humanidade, que ao menos estejamos mais preparados.
Catástrofes naturais, como furacões e terremotos, ou devastações como pandemias também mudam o curso da história e a ordem mundial. A fome na África alimenta guerras civis que alimentam a fome na África. A Primeira Guerra e a gripe espanhola engrossaram o caldo para a Grande Depressão, que resultaram no nazismo e na Segunda Guerra. Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 respaldaram as ações de presidentes americanos em quase 20 anos de guerras no Oriente Médio. Não ser uma guerra não significa que o que estamos vivendo não deixará marcas. A maneira como enfrentamos é que definirá o que virá depois.