Da mesma maneira que o bordado muitas vezes sobrevive ao pano que estampa, memórias ultrapassam vidas quando compartilhadas com as gerações mais novas. No projeto Tecendo Memórias, a psicopedagoga pradense Neusa Maria Roveda Stimamiglio uniu a tradição de contação de histórias dos imigrantes italianos com a do artesanato em bordado, que, mais do que uma fonte de renda, especialmente para as mulheres, constituiu um importante traço cultural das primeiras gerações da imigração e de seus descendentes.
Reconhecido no 32ª Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, concedido pelo Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Tecendo Memórias é o ponto culminante de uma pesquisa a qual Neusa Roveda dedicou os últimos cinco anos e envolveu mais de uma dezena de pessoas. Para entendê-lo, é melhor partir de sua materialidade: um livro publicado em dois volumes, sendo que o primeiro aborda o percurso da própria pesquisa, como um projeto de bastidores, e o segundo traz dez histórias da tradição oral da imigração, contadas por moradores antigos de Antônio Prado (município cujo conjunto arquitetônico e urbanístico é tombado pelo Iphan desde 1990). Nelas estão personagens que povoaram o imaginário das crianças do começo do século passado, como o Homem do Saco, o anti-herói Nanetto Pipetta e o monstrinho da floresta Sanguanel, entre outros.
— Os saberes e fazeres das mulheres tinham um envolvimento muito grande com a infância, pois, ao mesmo tempo em que tinham de realizar os trabalhos artesanais, elas eram responsáveis pela educação dos filhos. Os filós (como são chamados os almoços de colônia) eram os principais momentos de transmissão dessas histórias — explica a pesquisadora.
Obtidas através de entrevistas, as histórias foram transcritas e depois transformadas em conto por Neusa. Os contos foram enviados para a ilustradora Evelyn Postali, que criou uma imagem para cada história. Os desenhos, por sua vez, chegaram até a bordadeira Luiza Schicora, que elaborou 10 peças que aparecem reproduzidas no livro, além de estarem reunidas em um mural de pano levado a exposições que já chegaram a Caxias do Sul e Santa Maria. Em paralelo, as narrativas ganharam tradução para o dialeto talián (variação do idioma vêneto falado pelos imigrantes italianos) e até versões musicadas por um músico italiano, Pierangelo Tamiozzo. Multimídia, o projeto não acaba aí. Sua dimensão mais importante talvez ainda esteja por vir:
— Um dos focos do trabalho são as propostas de ações para educação patrimonial junto às escolas. Seria importante proporcionar às crianças e adolescentes da rede municipal momentos de troca e contação de histórias com as pessoas de mais idade, para que destes momentos apareçam novas histórias que possam agregar às que estão contadas no livro. As memórias precisam de pessoas que as perpetuem — destaca a pesquisadora.
Premiação em dezembro
A atuação profissional junto ao público infantil está no cerne do interesse de Neusa em tocar o projeto. A pesquisa teve origem no mestrado, em que estudou lembranças de infância e narrativas entrelaçando tempos e espaços em Antônio Prado.
— Contar uma história exige tempo, atenção, paciência. Isso está se perdendo. Os pais de hoje falham nesse aspecto de não contar as suas vidas para os filhos, por pensarem que isso não tem tanto valor. É um tempo diferente. Meu trabalho tem esse objetivo, quiçá, de que haja uma conversa entre gerações diferentes, que possam conversar sobre suas infâncias, com suas diferentes temáticas. A infância é uma construção sociocultural, ela muda, mas todos temos em comum o fato de já termos sido crianças — pontua.
Tecendo Memórias foi agraciado pelo Iphan na categoria "Iniciativas de excelência no campo do Patrimônio Cultural Imaterial". A cerimônia de premiação seria em outubro, em Porto Alegre, mas foi adiada para o próximo dia 5 de dezembro, no Rio de Janeiro. O que só faz aumentar uma expectativa que já está à altura da felicidade com a conquista:
— O prêmio é o maior reconhecimento que eu poderia ter. É o fechamento de um percurso de muitos anos, como a celebração de uma colheita. Foi uma notícia que me emocionou muito, por ter atingido o objetivo de fazer com que essas mulheres, que ficavam anônimas, que não eram reconhecidas ou valorizadas, pudessem ter sua autoria e seu protagonismo reconhecidos como contadoras de histórias que ajudam a construir a identidade desta região.
Mãos ágeis e precisas
Convidada para tecer as peças do projeto Tecendo Memórias, Luiza Schicora aprendeu a bordar e a tricotar aos 10 anos, com a avó. Recorda que ajudava a bordar em lençóis, panos de louça e panos de parede, que eram parte do enxoval. Aprender a lidar com as agulhas de tricô, bordado ou crochê não era uma opção.
— Em casa ou na escola, nós éramos educadas para casar. E o bordado e a costura eram a fonte de renda que as mulheres casadas podiam ter enquanto cuidavam dos filhos — conta a artesã, de 65 anos.
Era uma vida que se levava em outro ritmo, tanto adultos quanto crianças. Para a bordadeira, não era raro debruçar-se por horas a fio numa mesma peça, num trabalho meticuloso. Uma necessidade de concentração que, na opinião de Luiza, ajuda a afastar as novas gerações da arte manual.
— É um trabalho bem delicado, que demanda um tempo e uma concentração que as pessoas parece que não têm mais. Tem que ficar paradinha, não dá pra fazer andando de lá para cá. É tão raro hoje encontrar uma menina que se interesse por bordar quanto era antigamente encontrar uma que não soubesse — compara.
De obrigação na infância, o bordado é hoje uma paixão e também profissão. Além de atender a encomendas da comunidade, Luiza auxilia estudantes de moda em suas produções acadêmicas. A parceria com Neusa Roveda vem desde o projeto anterior ao Tecendo Memórias, que resultou no livro Bordando Sonhos (2010), uma coletânea de histórias contadas em panos de parede.
Memórias quase centenárias
Nas estantes abarrotadas de fichários, jornais e livros, e na mente lúcida que mantém aos 91 anos, Virginio Bortolotto, o Nilo, guarda boa parte da história de Antônio Prado. Pesquisador e radialista ainda na ativa (desde 1993 é apresentador de um programa na língua talián, em uma emissora local), Nilo contribuiu para o projeto Tecendo Memórias contando as aventuras de Nanetto Pipetta, herói cômico da imigração, cujas peripécias, escritas pelo frei capuchinho Aquiles Bernardi, o frei Paulino, foram publicadas em capítulos no jornal Stafetta Riograndense, nos anos 1920.
— Eu tinha seis ou sete anos de idade e os mais velhos liam as histórias do Nanetto para as crianças nos filós — conta o idoso.
Personagem fictício, Nanetto era um adolescente nascido na Itália e que veio para a América pouco disposto a trabalhar, ao contrário dos seus esforçados pais, mas muito afim de se dar bem sem muito esforço. Trapalhão, um pouco ingênuo e bastante folgado, o personagem virou febre entre os moradores da Serra, mas correu risco de cair no esquecimento durante os anos nacionalistas da Era Getúlio Vargas, que proibia estrangeirismos. A primeira edição da antologia Vida e História de Nanetto Pipetta, de 1936, não traz sequer nome do autor e do ilustrador. Após quase duas décadas silenciado, nos anos 1950 Nanetto teve suas histórias reeditadas em livro por Virginio Bortolotto, à época funcionário de uma editora, que organizou o volume. A tiragem de 10 mil exemplares esgotou em poucos dias e os livros que o idoso guarda em sua casa, edições em português e talián, são raridade.
De ouvinte a contador de histórias, Nilo é crítico ferrenho do celular, aparelho que diz ser o grande culpado pelo fato de as pessoas não terem, hoje, capacidade de prestar a atenção ao que as outras têm a dizer.
– Eu já estou na porta para ir embora, mas vocês que são jovens vão poder ver: daqui 5 ou 10 anos as pessoas não vão conseguir se entender nem dentro de casa. O celular vai desnortear a pouca harmonia que ainda existe. A gente está conversando e a pessoa puxa o celular e nem te olha, nem responde. Nem na missa as pessoas prestam mais atenção sem olhar o celular. As pessoas estão condenadas a falar sozinhas, sem serem ouvidas – lamenta.