Armadilha (Trap, 2024), o mais recente filme de M. Night Shyamalan, faz jus a seu título. É uma cilada — para o protagonista, para o diretor, para o público.
Disponível a partir desta sexta-feira (25) na plataforma Max, este é o 16º longa-metragem do cineasta nascido na Índia e naturalizado estadunidense que despontou para o mundo 25 anos atrás, quando lançou O Sexto Sentido (1999). Esse filme rendeu a Shyamalan, então com 29 anos, comparações com Hitchcock e Spielberg e suas únicas indicações ao Oscar, nas categorias de melhor direção e roteiro original. Ainda hoje, é também seu maior sucesso comercial, com US$ 672,8 milhões arrecadados nas bilheterias. (Armadilha parou nos US$ 82,6 milhões.)
O Sexto Sentido estabeleceu um estilo e marcas que pautariam os trabalhos posteriores do diretor, como Corpo Fechado (2000), Sinais (2002), A Vila (2004), A Dama na Água (2006), A Visita (2015), Fragmentado ( 2016), Tempo (2021) e Batem à Porta (2023). São característicos de sua obra o embate entre crença e descrença, a discussão sobre medo, os personagens infantis, a câmera que faz a varredura dos ambientes, desnudando momentos de intimidade, girando em torno de pessoas que estão desnorteadas, construindo a atmosfera de suspense, sugerindo ou explicitando o horror. O traço mais notório, aquilo que deu fama a Shyamalan, é o exercício do plot twist, a reviravolta na trama, não raro ressignificando tudo o que tínhamos visto.
O currículo permitiu a Shyamalan angariar uma legião de fãs, dispostos a segui-lo mesmo que haja tropeços ou decepções no caminho, como Fim dos Tempos (2008), O Último Mestre do Ar (2010), Depois da Terra (2013) e Vidro (2019). Esse mesmo currículo gera no espectador a expectativa de que, em algum momento, haverá uma guinada na história.
Pois bem: Armadilha revela nos seus primeiros 15 minutos o que em outro filme seria o plot twist. Cooper, o amoroso pai de família interpretado por Josh Hartnett, que vai com a filha de 12 anos, Riley (Ariel Donaghue), ao megashow de uma cantora pop tipo Taylor Swift, é na verdade um assassino serial, o Açougueiro, que vem sendo caçado pela polícia da Filadélfia.
A armadilha do título refere-se ao plano para capturar o Açougueiro, cuja identidade é desconhecida pelos policiais: estão apenas seguindo uma pista deixada no local de um crime, um recibo da compra do ingresso. Nenhum homem poderá sair do show sem ser interrogado e revistado.
Se parece um tanto fantasioso, vale dizer que Shyamalan inspirou-se em uma história real, a Operação Flagship, realizada em 1985 nos Estados Unidos. Entradas gratuitas para um jogo de futebol americano entre o Washington Redskins e o Cincinnati Bengals atraíram foragidos para o RFK Stadium, onde policiais disfarçados — inclusive de mascotes e de cheerleaders, as animadoras de torcida — prenderam 101 criminosos.
No filme, o diretor adota a perspectiva do vilão — é um ponto positivo de Armadilha: colocar o espectador em uma posição incômoda. Viramos cúmplices das tentativas de Cooper de burlar o cerco policial à medida em que Shyamalan vai mostrando as etapas e os ambientes de um show de grande porte. A claustrofobia do cenário soma-se ao conflito psicológico do protagonista: de súbito, as duas vidas opostas que leva, a de psicopata e a de homem de família, colidem.
Cooper precisa escapar não apenas para evitar sua prisão, mas para preservar sua imagem junto à filha. "Confie em mim", é uma das primeiras frases que o personagem diz a ela, quando estão chegando ao estádio. A intrigante dualidade, contudo, não encontra uma personalização à altura no desempenho de Josh Hartnett, um ator com menos recursos dramáticos do que o papel exige.
Aliás, a escalação do elenco é uma armadilha que M. Night Shyamalan criou para si mesmo. Lady Raven, a fictícia estrela da música pop, é encarnada por uma das suas três filhas, Saleka, que de fato é cantora e compositora. As canções são bacanas, a voz é agradável, e os bastidores das filmagens renderam uma boa história para quem se interessa em saber sobre as complexidades de uma produção cinematográfica. Mas como atriz Saleka é bastante limitada, e sua presença suscita comentários como o de Lovia Gyarkye, do Hollywood Reporter: "O filme é um concerto da filha de Shyamalan envolto em um thriller mediano". Quando Lady Raven diz, no palco, que tem uma relação mal resolvida com o pai, parece menos uma lavação pública da roupa suja familiar do que um lance para gerar burburinho, uma jogada de marketing — assim como é a aparição, no fundo de uma cena, do cartaz de Os Observadores (2024), estreia de outra filha do cineasta, Ishana, na direção de longas-metragens.
ALERTA DE SPOILERS.
A maior cilada na qual Shyamalan se mete é quando Armadilha sai da arapuca. O filme perde a tensão do espaço restrito. Fora do estádio, o diretor fica livre para, como brincou o crítico A.A. Dowd, "não apenas forçar a credulidade, mas também a estrangular, embrulhar em plástico e deixá-la apodrecendo em uma lixeira".
Em seu terceiro ato, Armadilha vira um trem descarrilado. Ou nem tanto: faltou a M. Night Shyamalan ser mais desmedido, como James Wan em Maligno (2021), por exemplo. Um cineasta como Brian De Palma nos perturbaria mais — e nos divertiria mais —, explorando melhor o complicado relacionamento de Cooper com sua mãe, quem sabe até estabelecendo uma conexão maior com a veterana especialista do FBI que traçou o perfil psicológico do Açougueiro.
Shyamalan prefere apostar em sucessivas viradas neste jogo de gato e rato, convertendo Cooper em um personagem como os de Bruce Willis e James McAvoy na trilogia Corpo Fechado, Fragmentado e Vidro, emprestando ao protagonista um tom sobrenatural. Isso, ao invés de conceder ao filme um caráter epifânico, faz dele uma mera caricatura — o cineasta descarta o peso da sua premissa para investir em uma comicidade totalmente deslocada. A risada de Cooper na última imagem é a do júbilo de Shyamalan pregando mais uma peça na sua audiência. E a cena pós-créditos transforma de vez Armadilha em uma piada.
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