Não seria de estranhar que, ao combinar uma entrevista com Fernando Souza Neto, a conversa o apanhasse na estrada. Estrada modo de dizer. No caso de Fernando, trata-se da areia da beira da praia. É que ele se especializou em caminhadas pelo sul do Estado, entre a praia do Cassino e a Barra do Chuí, um roteiro de 236 quilômetros, depois de fazer esse mesmo roteiro, sozinho, quase uma década atrás.
A ligação, interrompida de tanto e tanto apesar de ele ter buscado um local com boa conexão, o alcançou no Farol do Albardão, instalado em 1909 entre Rio Grande e o Uruguai para sinalizar as embarcações e tentar evitar naufrágios. Aos trancos da internet, mas com voz firme e tranquila, Fernando falou sobre o livro Peregrino Off-road, que ele lança no dia 13 na Feira do Livro de Porto Alegre.
Aos 57 anos, Fernando vive com a companheira Janaína entre a Capital e uma casa alugada na praia do Hermenegildo, onde programa com o filho Tiago, 28, o trajeto mencionado acima e, principalmente, o Caminho dos Faróis, outro percurso de 190 quilômetros pela mesma região, cumprido em média cinco vezes por ano. Desta vez, contabilizava a 31ª edição do roteiro de oito dias, acompanhando 16 pessoas.
Por que caminhar por um local tão inóspito? Fernando responde:
— Ninguém vai só pela paisagem. Tem muito além do isolamento.
Em 2012, o dentista empreendeu essa jornada a sós, inspirado pelo livro As Sete Leis Espirituais do Sucesso, do médico indiano Deepak Chopra. Partiu sem saber o que encontraria e diz ter se reconectado consigo e com a natureza. É essa transformação que ele conta no livro.
Filho de dentista (o pai, Leonel, 85, ainda exerce a Odontologia, e a filha Lorenza, 30, também se dedica à profissão), durante quase 35 anos trabalhou na clínica da família, em expedientes de nove a 11 horas diárias. Aquela primeira jornada o fez entender que o ritmo alucinado de trabalho não o fazia feliz. Bolou um plano pessoal para garantir uma vida mais simples, sem supérfluos, e, simbolicamente, em 2020 entregou a carteira de dentista, embora amasse a profissão:
— Me dei conta de que ter uma vida rica é ter tempo. E é nessa minha atividade hoje, fazendo outros perceberem o mesmo, que eu acho graça.
No livro, ele descreve não a viagem em si, mas seu novo vínculo com o ambiente, com os animais e com os “sinais” que ia recebendo ao longo do caminho, experiências quase místicas. Ele diz que oferece a oportunidade de as pessoas “se deslocarem desse ambiente de loucura, de trabalhar e acumular, para refazer essa conexão, vislumbrar que se pode ser um pouco diferente”.
Pedi que Fernando traçasse um perfil dessas pessoas e ele resumiu assim: principalmente mulheres entre 45 e 65 anos, em geral viajando sozinhas. Apenas 10% fazem o trajeto como preparação para caminhadas mais longas, como Santiago de Compostela. Entre os que traçam o roteiro mais extenso (Cassino-Barra do Chuí), a atração até pode ser a aventura e a superação, mas em todos os caminhantes Fernando percebe que a busca principal é por se desligar da correria:
— Numa breve fala, antes de partirmos, repito que ninguém está ali por engano. As pessoas podem se enganar na escolha de um filme, na opção por um prato de restaurante, mas não ali. Elas sabem que vão caminhar por oito dias sob sol, chuva, vento, sem internet, dormindo no chão. Quem está ali sabe que precisa de um tempo para si. O que qualquer um procura na caminhada está dentro de si. O afastamento até ajuda as pessoas a se despirem dos jalecos, das necessidades, a natureza favorece isso, mas a busca é interior. Já estivemos muito mais conectados com a natureza, e quando nos aproximamos dela, buscamos nossa essência. O caminhar em grupo faz as pessoas se abrirem, se mostrarem como são. Tudo fica simples.
Em um dos dias do trajeto, o grupo é convidado a recolher o lixo da praia. Fernando e Janaína, que é arte-educadora, dedicam-se à educação ambiental. Ao encontrarem e fotografarem no caminho baleias enroladas em redes, bichos presos em plásticos e, também, muitas cenas bonitas, de vida, os caminhantes, e eles, vão aprendendo mais sobre o ambiente.
E o ex-dentista, que abandonou uma profissão à qual é muito grato, acaba cada jornada pela beira da praia mais satisfeito. Agora, brinca, ele só usa agulhas para furar uma ou outra bolha do próprio pé ou de algum peregrino. É preciso seguir caminhando.
Na Feira do Livro
Peregrino Off-road: Sou Todo Ouvidos — Uma Incomum Jornada Espiritual (Editora Bodigaya). Sessão de autógrafos no dia 13, às 17h30min. Disponível na banca número 10, a R$ 65, com desconto de até 10%.
10 anos caminhando pelo Vale do Taquari
Como é bom ver que boas ideias persistem e prosperam. No caso, a boa ideia são os Passeios na Colônia, as caminhadas pelo Vale do Taquari que completam seu décimo aniversário. E, para comemorar, adivinhe? Sim, uma caminhada de 13 quilômetros pelo interior de Teutônia, no dia 21, marcará a data (informações pelo WhatsApp (51) 99583-2672). O evento de número 194 lembra o início de tudo, em 2011, com o primeiro roteiro no interior de Marques de Souza.
O balanço:
- 22 mil caminhantes
- 2,7 mil quilômetros percorridos
- 228 localidades visitadas em 68 municípios
- 1,7 mil árvores plantadas para compensar eventuais danos à natureza
Três perguntas para Alício de Assunção, 59 anos, jornalista e coordenador do Passeios na Colônia.
Por que caminhar pelo Vale do Taquari?
— Porque é uma região privilegiada com muitas estradas rurais sem asfalto e natureza exuberante, além de muita história, cultura e gastronomia.
O que aprenderam em 10 anos de caminhada?
— Que o mais importante é o trajeto e não só o ponto de chegada.
O que vocês vislumbram para o futuro do Passeios na Colônia?
— Que possa servir como exemplo e inspiração para outras iniciativas de turismo.