Antes da enchente de maio, Cruzeiro do Sul era para mim apenas a cidade que elegeu pela primeira vez uma prefeita no Rio Grande do Sul. Dona Iris Altmayer Ranck entrou para a história em 1982, no ano em que me tornei jornalista. Era uma senhora de olhos muito azuis, com forte sotaque alemão, decidida e simpática.
Além da admiração por essa ousadia, nenhum outro laço me ligava a Cruzeiro até 28 de maio, quando entrei na cidade pela primeira vez para escolher o lugar de onde apresentaria o Gaúcha Atualidade no dia seguinte, marcando o primeiro mês da enchente que tornou a cidade mundialmente conhecida pelo pior dos motivos: a devastação causada pela enchente do Rio Taquari.
As cicatrizes deixadas pelo Taquari no corpo e na alma de Cruzeiro estão visíveis por todos os lados. Mesmo feridos, os moradores esbanjam afeto, gentileza e determinação.
Escolhi ir a Cruzeiro impressionada pelas descrições dos colegas que me antecederam assim que a água permitiu a entrada na cidade. Lucas Abati, um dos jovens repórteres que estão ajudando a Rádio Gaúcha a contar a história da enchente de 2024 no Vale do Taquari, me convenceu por seus relatos de que era preciso ir até o bairro Passo de Estrela, espécie de epicentro da tragédia na simpática cidadezinha de dona Iris.
Fui até lá com o técnico Leonardo Reis, pensando em encontrar um lugar com as condições adequadas para apresentar um programa ao vivo, mas só encontramos destruição. Parecia impossível acreditar que ali onde só restam entulhos um dia tenha sido uma comunidade. Difícil entender como o Taquari arrasou o vilarejo com tanta força, causando o maior número proporcional de mortes (15 até a última contagem e sete pessoas ainda desaparecidas). De longe, avistamos a imagem de Nossa Senhora de Fátima, que resistiu à destruição da igreja, no que é considerado um sinal divino. Começou a chover e voltamos para a cidade.
No alto de um morro avistamos um casarão branco com as janelas azuis em estilo colonial português. Seria um bom cenário para o Gaúcha Atualidade, agora em imagens pelo YouTube, mas temíamos que fosse aquele o morro com risco de desabar. Fui ao abrigo onde famílias dividiam o espaço com os móveis e eletrodomésticos que conseguiram salvar, mas ali estava apenas uma parte da história.
Na prefeitura, perguntei por um lugar com energia e sinal de internet e o secretário Leandro Johner prontamente sugeriu:
— Quem sabe lá em cima, na Casa do Morro, onde é a nossa Secretaria de Educação?
Era o casarão branco de janelas azuis que emoldura o morro e de onde se tem a vista do rio e do centro da cidade. Aquela parte não está ameaçada de desabar. A secretária Anelise Assmann, a quem a cidade conhece como “Nêga”, abriu as portas com um sorriso acolhedor e se desculpou “pela bagunça”:
— Quando o rio começou a subir, recolhemos tudo o que foi possível das creches e fomos guardando aqui.
Na manhã seguinte, a secretária nos esperou com café quentinho e mostrou no seu celular duas fotos tiradas do mesmo lugar. Em uma, o Taquari é um espelho com as duas margens cobertas pela densa vegetação. Na outra, a esponja verde do lado de Estrela virou uma cratera marrom. À esquerda, o Passo de Estrela sumiu do mapa. O Centro Poliesportivo, orgulho dos cruzeirenses e conhecido por abrigar a Festa do Aipim, cancelada em 2023 por causa da outra enchente, virou um lodaçal.
Antes de o programa começar, o prefeito João Henrique Dullius contou sua saga desde a posse, em 2021. Assumiu com o mundo acuado pela pandemia. Nestes três anos e meio, enfrentou nove enchentes, uma seca e um temporal, o de 16 de janeiro, que deixou a cidade oito dias sem luz. Das nove, três foram agora em maio. Porque quando o Taquari começava a baixar veio o repique e, depois, uma terceira. Choveu 568 milímetros em dois dias.
Seu João não perde a esperança: já arregaçou as mangas para reconstruir a cidade com a ajuda dos cruzeirenses e dos voluntários que vieram de outros Estados, especialmente de Santa Catarina. De onde um líder tira força nesta hora?
Dullius, 58 anos, cabelos grisalhos, tem nos olhos a mesma determinação do jovem Mateus Trojan, prefeito de Muçum, a quem conheci na enchente de setembro e que impressiona pela maturidade aos vinte e poucos anos.
Candidato a vice-prefeito na chapa derrotada por Dullius em 2020, Adeildo Mello aprendeu com o ex-governador Ranolfo Vieira Júnior a arte da conciliação. Em vez de ficar lambendo as feridas, aceitou o convite de Dullius para integrar o governo e, hoje, coordena a Defesa Civil e acumula duas secretarias: Habitação e Assistência Social.
Na noite da grande enchente, Adeildo intuiu que a cidade ficaria ilhada e avisou ao prefeito que iria para a vizinha Lajeado em busca de socorro. Foi direto para a sede do Corpo de Bombeiros e, de lá, coordenou a operação de salvamento de cruzeirenses presos nos telhados nos bairros à beira do Taquari e que só sobreviveram porque foram retirados de helicóptero pela Brigada Militar, pelos bombeiros e pelo Exército.
Foi Adeildo quem me apresentou três mulheres que sintetizam o drama dos afetados pela enchente: Natalina Ventura dos Santos, Adriana e Natana Tainara de Oliveira. As três já tinham perdido tudo na enchente de setembro. Natalina e Tainara tiveram as casas destruídas e estavam dependendo do aluguel social. As casas em que moravam foram hpor água abaixo.
— Eu morava no Passo (de Estrela). Quando vi o rio subindo daquele jeito, pensei: se eu não sair agora, não saio mais. Botei milha filha na moto e corri aqui pra cima. Se tivesse ficado lá, teríamos morrido — conta Natana, que é porteira e não perde a esperança.
Adriana estava reconstruindo o que restou da casa em setembro. A enchente de maio levou tudo e ela teve de se mudar para a casa da mãe, em Lajeado, com o filho Mateus, de 3 anos. Todos os dias o menino faz duas perguntas:
— Mãe, quando é que eu vou voltar para a creche? Mãe, quando é que nós vamos voltar pra casa?
Faxineira de uma escola levada pelo Taquari, Adriana não tem resposta para nenhuma das duas perguntas.