O jornalista Paulo Egídio colabora com a colunista Rosane de Oliveira, titular deste espaço
Passados oito meses do leilão e com a empresa já sob gestão privada, a venda da Companhia Riograndense de Saneamento ainda é alvo de questionamentos. A principal cisma levantada pelos críticos da operação diz respeito ao valor pelo qual a Corsan foi vendida ao consórcio Aegea: R$ 4,15 bilhões, preço 1% maior que o mínimo estipulado no edital.
As dúvidas a respeito do valor foram o principal combustível de uma série de questionamentos em diferentes esferas jurídicas, que atrasaram em sete meses a conclusão da operação. Após o vaivém, o contrato de compra e venda foi assinado no dia 7 de julho e a Aegea assumiu o controle da empresa.
Ainda assim, diferentes ações ainda tramitam no Tribunal de Contas do Estado (TCE) e no Poder Judiciário e, no início do mês, deputados de oposição lançaram nova ofensiva para acionar o Ministério Público (MP), a Polícia Civil e novamente o TCE para tentar reverter a privatização.
Relatora do processo que analisou a venda da companhia no Tribunal de Contas, a conselheira-substituta Ana Cristina Moraes apontou subavaliação de cerca de R$ 1,5 bilhão e, por isso, votou pela anulação do leilão, em sessão da Primeira Câmara da Corte, no mês passado.
Para a conselheira, houve "frustração no caráter competitivo" do certame, o que contraria a Lei de Licitações. Além da suposta falha na estimativa de valor, ela apontou problemas nos termos aditivos assinados junto às prefeituras, que estenderam a validade dos contratos com a Corsan.
O Palácio Piratini contesta os apontamentos. Questionada sobre os termos do voto, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) garante que não houve subavaliação da Corsan e que o valor apurado foi considerado regular pelos auditores do TCE e pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, em processo judicial. A PGE ainda ressalta que os aditivos foram questionados em diversas ações, e em nenhuma delas foi reconhecida irregularidade.
O entendimento da relatora foi acompanhado pelo conselheiro Estilac Xavier, formando maioria na Primeira Câmara. No entanto, o conselheiro Renato Azeredo pediu vista, impedindo a conclusão do julgamento. Seja qual for a decisão do órgão, caberá ao plenário do TCE, formado por sete conselheiros, a palavra final sobre a regularidade da privatização.
O voto de Ana Cristina Moraes foi proferido no dia 18 de julho. A coluna teve acesso ao documento de 378 páginas na semana passada e resume os argumentos que levaram a conselheira ao entendimento de que o certame no qual a Corsan foi vendida deve ser refeito. Ao final, também constam as respostas da PGE a cada um desses pontos.
Subavaliação do valor
Antes da privatização, duas consultorias contratadas pelo governo do Estado estimaram um valor de venda semelhante para a Corsan. A Finenge projetou que a Corsan valeria R$ 4,225 bilhões, enquanto o Banco Genial apontou valor de R$ 4,024 bilhões.
No entanto, a conselheira considerou que houve equívocos nas estimativas do lucro da empresa em 2022 e 2023, que impactou diretamente na definição do valor pela qual a estatal foi vendida. Ao comparar a projeção da Genial para o lucro líquido de 2022 com as demonstrações financeiras da Corsan, a relatora constatou diferença de R$ 468 milhões.
No caso do exercício de 2023, o lucro líquido estimado, de R$ 234 milhões, foi superado ainda no primeiro trimestre do ano. Com o resultado se repetindo nos trimestres seguintes, o lucro da companhia no ano será de aproximadamente R$ 1,27 bilhão, cerca de R$ 1 bilhão a mais do que o projetado.
Com isso, a relatora apontou subavaliação de R$ 1,5 bilhão no valor da empresa que, para ela "equipara-se a um desconto na alienação".
"Se o erro foi de tamanha magnitude no próprio exercício de levantamento (2022), então o restante da projeção resta maculada, tendo vista a maior probabilidade de erro generalizado", assinalou.
O voto ainda ressalta que, no terceiro trimestre do ano passado, já era possível perceber a diferença entre o lucro projetado pelas consultorias e o resultado real, mas o edital do leilão foi publicado em 29 de novembro sem correções no preço de referência.
"Formo a minha convicção de que o Ebitda (Lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização) e o lucro líquido projetado por ambas as consultorias para os exercícios de 2022 e 2023 provocaram a subavaliação do valor da Corsan e, por óbvio, esses dados já estavam disponíveis quando da realização do leilão, tanto em virtude da divulgação dos dados do 3T22 (terceiro trimestre de 2022),em 11 de novembro de 2022 ,quanto pelo acesso aos dados mais atualizados dos sistemas financeiros e comerciais da companhia", concluiu a conselheira.
O que diz a PGE:
"Não houve subavaliação. A metodologia utilizada para a avaliação econômico-financeira e o valor apurado foram considerados regulares pelos auditores (área técnica) do TCE e também pela 4ª Câmara Cível do TJRS, no processo judicial em que arguida tal questão."
Nulidades nos contratos com os municípios
Quando resolveu se desfazer do controle acionário da Corsan, o governo do Estado chamou as prefeituras a assinarem um aditivo contratual com a empresa. O documento estendia a validade dos vínculos e determinava o cumprimento das metas do novo marco legal do saneamento.
Ao avaliar o teor do aditivo, a equipe técnica da Agergs, agência reguladora que fiscaliza os contratos públicos estaduais, indicou que a cláusula número 42 do termo poderia ser considerada nula. Além disso, apontou que não havia sido inserida a matriz de risco, ferramenta que visa antever possíveis riscos no contrato.
Apesar do alerta, a cláusula 42 foi mantida nos documentos submetidos às prefeituras. Entre outras determinações, ela estipula que os planos de saneamento dos municípios devem estar de acordo com o planejamento de investimentos da Corsan.
Na avaliação da relatora, há "fortes indícios" de que o planejamento do saneamento básico estaria sendo realizado apenas pela Corsan, sem a participação das prefeituras, que são as concedentes do serviço.
Ou seja: neste caso, o mesmo agente estaria planejando e executando o plano de saneamento, o que contraria a legislação federal.
Também recomendada pela Agergs, a matriz de risco ficou de fora dos aditivos. Conforme a relatora, a ausência do dispositivo é causa de nulidade contratual, de acordo com a Lei Federal nº 11.445/2007.
A conselheira ainda contestou a cláusula de número 40 do aditivo, que obriga os municípios a adotarem o Solutrat, projeto de limpeza de fossas sépticas oferecido pela Corsan. Ana Cristina ressaltou que o Plano Estadual de Saneamento aponta para o uso de fossas sépticas em percentual 10% menor do que o projetado pela companhia.
A consequência disso é que o investimento necessário para a adequação ao plano não seria de R$ 15 bilhões, como estimado, mas de R$ 19 bilhões, o que implicou em um desconto na avaliação do preço da Corsan pelos agentes do mercado e se transformou em um risco adicional ao negócio, o que afetou diretamente a concorrência pela estatal.
O voto lembra que, de 10 empresas tenham acessado as informações sobre a Corsan no data room (ambiente seguro para consulta de dados confidenciais), apenas uma apresentou proposta no leilão.
"Esse cenário de insegurança jurídica dos contratos com a possibilidade de aumento do CAPEX (investimento necessário), muito provavelmente, desestimulou entrada de outros concorrentes no leilão", assinalou.
O que diz a PGE:
"Os termos aditivos foram questionados em diversas ações judiciais perante o Judiciário Estadual, sendo que em nenhuma delas sobreveio qualquer decisão reconhecendo irregularidade. Todas as cláusulas são válidas e seguem vigorando."
Gestão de projetos
Em seu voto, a relatora ainda aponta que houve erro na gestão dos projetos de engenharia para a implementação do saneamento nos municípios. Conforme o documento, a Corsan realizou os projetos sem a anuência prévia de muitos municípios, que detêm o poder da concessão do saneamento.
"Destaco que foi um erro de planejamento realizar projetos de engenharia e a sua orçamentação (CAPEX) sem anteriormente ter a anuência e o juízo de adequação da parte interessada (municípios). Isso não é nem mesmo uma questão de legalidade apenas, mas uma questão de boa gestão de projetos", sintetizou.
O que diz a PGE:
"Tal ponto não era objeto do processo em questão, que trata apenas dos aspectos relacionados ao procedimento da desestatização. Portanto, além de todos os projetos terem sido realizados de acordo com os contratos vigentes à época, é certo que este tema deve ser examinado no processo próprio, que é o processo de contas ordinárias da administração da Corsan."