O Jornal Nacional terminou com o bombeiro Elielson Silva dos Santos tocando Cidade Maravilhosa, Eu Sei que Vou Te Amar e Aquarela do Brasil ao trompete no alto de uma escada de 50 metros. A música, a narração suave do repórter Marcelo Canellas, a entrevista do bombeiro, a reação entusiasmada dos moradores em quarentena e a imagem panorâmica do Rio de Janeiro jogaram um pouco de luz no dia que foi ensolarado por fora e cinzento por dentro. Como não se emocionar?
A Globo tem se esforçado para terminar seu principal telejornal com alguma notícia boa depois da sucessão de tragédias que o bom jornalismo não tem como ignorar. Hoje o dia foi péssimo. Logo cedo resgatei do dia anterior uma mensagem em que alguém me recomendava: “Põe Ecuador no Google”. Antes que fizesse a busca, o colega Daniel Scola mandou uma reportagem do jornal El Universo com o título “Cadáveres empiezan a aparecer abandonados em varias esquinas de Guayaquil”.
O Equador foi o primeiro país da América Latina a atingir o temido caos no no sistema de saúde e, também, no funerário. As vítimas da covid-19 morrem em casa por falta de leitos e as famílias não têm como sepultar os corpos. No desespero, depois de alguns dias, abandonam os entes queridos nas ruas ou incineram os corpos.
Fosse um filme, diríamos que é de mau gosto. Mas é real, assustador e muito próximo de nós. E quente, para desfazer a ilusão de que o coronavírus só matou tanta gente na Europa porque lá era inverno e agora é primavera. Em Guayaquil a temperatura média tem sido de 33°C durante o dia. O país soma 120 mortos e 3.302 casos confirmados. Só perde para o Brasil na América Latina, mas o sistema deles, mais frágil, implodiu.
Nos Estados Unidos, quebrou-se um recorde macabro. Foram 1.169 mortes em 24 horas, elevando para quase 6 mil o número de vidas perdidas para a covid-19. O recorde anterior era de Itália, com 969 em 27 de março. Quem não teme essa medalha de chumbo?
No Brasil, o presidente decorativo retomou as bravatas. A pretexto de defender os empregos, voltou a condenar o isolamento recomendado por seu próprio governo. Mostrou que quem manda é o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, a quem adoraria demitir, mas não pode, porque “estamos no meio de uma guerra”. Disse que o ministro precisa ouvir mais o presidente da República, que deveria ter mais humildade, que os dois andam se bicando há algum tempo. Enquanto o chefe falava, Mandetta seguia trabalhando, respaldado pelos colegas, pelo Congresso, pelo Supremo Tribunal Federal, pela sociedade.
O presidente decorativo repetiu que vai morrer gente, que lamenta muito, mas é assim mesmo. E que o coronavírus só mata quem tem mais de 60 anos ou que já tinha algum problema de saúde, como se pessoas nessa condição fossem descartáveis. É cruel e desumano com os velhinhos. Previu saques no país e disse que está com o decreto pronto para determinar a retomada da atividade econômica e que está esperando apenas “a população pedir mais” para voltar ao trabalho.
Fiquei matutando. Será que o presidente fechou os olhos e os ouvidos para o mundo? Será que não ouve os próprios ministros? Será que acha mesmo que os governadores estão inflando os números para “fazer política”? O ministro da Saúde reconheceu que os números são inferiores aos reais, porque os testes estão atrasados. Pelos dados oficiais, o Brasil tem 299 mortos e 7.910 casos confirmados. Em 24 horas, o número de casos subiu 15,71% e o de mortes, 24,07%.
Vou rever a reportagem sobre o bombeiro do trompete. Como disse ele ao repórter Marcelo Canellas, “a música é a arte de combinar os sons e tocar a alma das pessoas”. O mundo precisa mais de bombeiros do que de incendiários.