Por motivos óbvios, não gosto do 31 de março. Mesmo em liberdade, lembra de coisas que não gosto de lembrar. Por que seria diferente hoje, quando estamos confinados, vendo o mundo afundar na incerteza sobre o futuro? Foi ruim este 31 de março, mas não de todo. Porque no meio da treva surgiram dois fachos de luz _ um pela manhã, outro à noite.
No Gaúcha Atualidade entrevistamos a empresária Luiza Trajano, dona do Magazine Luiza, mulher de fala simples, inspiradora e generosa. Antes que alguém venha dizer “ah, mas se eu tivesse o dinheiro dela também seria generosa”, convém lembrar que um empresário que se fantasia de patriota ameaçou demitir 22 mil empregados e colocar a culpa nas medidas restritivas adotadas por Estados e municípios para conter a disseminação do coronavírus. Outro, do ramos dos hambúrgueres e do lucro a qualquer custo, tratou como normal a morte de 5 ou 6 mil pessoas.
Dona Luiza doou colchões para equipar hospitais de campanha, doou R$ 10 milhões da poupança da família (para não descapitalizar a empresa) e sugeriu que as empresas façam o possível e o impossível para não demitir. A ligação estava péssima, porque nosso produtor, Bruno Pancot, localizou dona Luiza confim do Brasil, onde o sinal era péssimo. Mas ela deu o recado e ainda anunciou que o site da Magalu vai vender produtos de pequenas empresas que não têm a estrutura que ela tem. Salvou minha manhã, dona Luiza.
O outro facho de esperança veio da Unimed, no intervalo da novela Fina Estampa. Uma empresa de planos de saúde poderia estar chorando as pitangas e traçando cenários de caos, porque terá de bancar tratamento para milhares de segurados que vierem a sofrer com a covid-19, mas a Unimed resolveu iluminar a noite da nossa quarentena com uma mensagem inspiradora. Criação coletiva da agência Morya, com imagens captadas nas casas de pessoas em isolamento, o filme teve como música-tema uma adaptação de Horizontes, um dos hinos de Porto Alegre, imortalizado na voz de Elaine Geilser. A letra original de Flávio Bicca foi levemente modificada por Gregório Colla Leal, ficou assim:
“Já faz uns dias não ando
Nas ruas de um porto não muito alegre
E que, no entanto, me traz encantos
De um pôr do sol da minha janela
Pra seguir livre muitos caminhos
Agora é hora de estar sozinho
Não ir pra escola ou faculdade
E dos amigos sentir saudade
Cidade Baixa, Moinhos de vento
Todos os bairros nesse momento
Mostrar um gesto de humanidade
E proteger os de mais idade
Depois de um tempo rever vocês
Em 30 dias, 40 talvez
Pensa no outro, não só em ti
Que logo logo nós vamos curtir por aí”.
No filme, identifiquei os colegas Neto Fagundes e Cris Silva, rostos conhecidos e desconhecidos, crianças irradiando luz. Meu marido, que normalmente trabalha em casa, lendo e escrevendo, apareceu no filme cozinhando e pintando uma pequena tela, inspirado em duas das mulheres de sua vida, Djanira e Tarsila do Amaral. Foi filmado pelo nosso filho, que agora trabalha no quarto e anda pela casa de celular em punho, registrando a quarentena em vídeo.
Às 20h30min, quando o presidente começou a falar em rede nacional de rádio e TV, a orquestra de panelas iniciou mais um dos seus concertos. Foi o mais longo e o mais intenso desde que estamos em casa, neste retiro forçado. O panelaço não é exclusividade desta banda (Rio Branmco/Moinhos de Vento). Repetiu-se pelos principais bairros de Porto Alegre, segundo relato dos colegas e postagens e, redes sociais.
Minha vontade é pular a parte das mortes da terça-feira, mas escrevo esse diário também como um registro histórico da evolução da pandemia. Os números e as cenas de cidades vazias seguem assombrando. Três países tiveram mais de 800 mortos hoje (Itália, Espanha e Estados Unidos).
No Brasil, o número de casos deu um salto, transformando o gráfico num desenho que lembra a imagem de um dinossauro. Na contabilidade oficial, março terminou com 5.717 casos confirmados e 201 óbitos, índice de 3,5% de letalidade. No Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite anunciou que as medidas restritivas seguirão pelo menos até 15 de abril e as escolas continuarão fechadas até o final do mês.