Às 16h desta segunda-feira, 6 de maio de 2024, um senhor nos parou na Rua dos Andradas, a Rua da Praia dos gaúchos. Estávamos eu, o repórter fotográfico André Ávila, o jornalista Carlos Etchichury e o professor Demétrio Luis Guadagnin, pesquisador do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Demétrio é um daqueles seres humanos capazes de dar a vida pelo outro, incansável navegador e abnegado nas horas mais difíceis. Voluntário, ele nos guiou por um tour do terror. De bote a remo, navegamos pelo Centro Histórico de uma Porto Alegre devastada, cartões-postais transformados em uma ferida aberta na alma da cidade.
Dorcélia Faut, 81 anos, há 50 deles morando no mesmo lugar, a duas quadras do Guaíba, não queria sair.
— Chorei para não ir — disse.
Dorcélia mora no 14º andar do prédio. Mas essa é uma história que contarei adiante. Dorcélia foi o fim. Foi quando minha mão, com o celular acostumado a registrar imagens de refugiados da guerra no Oriente Médio, na Ucrânia, tremeu. Mas há um começo.
Descemos a Rua Caldas Júnior às 14h. Ingressamos na Rua da Praia de bote à direta, passando pela frente do Rua da Praia Shopping, das bancas de revista e da sede do Banrisul. Tudo submerso.
Ingressar na Praça da Alfândega completamente submersa é algo inimaginável até para mim, acostumado a cenários de catástrofe, olhos que viram tragédias provocadas pela natureza, o furacão Katrina em New Orleans, em 2005, o terremoto no Haiti, em 2010. Guerras no Líbano, na Líbia, no Iraque, na Ucrânia e em Israel. Cobrir uma tragédia em casa, na nossa cidade, é diferente. A gente reconhece os cartões-postais. A gente imagina a Feira do livro, o vai e vem lotado de leitores, os espaços vazios. Solitárias, as figuras em bronze de Carlos Drummond de Andrade e nosso maior poeta, Mario Quintana, estão debaixo d'água.
No avançar em direção ao Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), em frente ao olhar altivo do monumento ao Marechal Osório, há obstáculos. Ali se percebe que bancos da praça e degraus que conduzem à estátua se tornam submersos, e armadilhas no avançar dos botes. Com cuidado, nossa equipe supera os bloqueios invisíveis. Chegamos à frente do Margs, do Santander Cultural e no Memorial do Rio Grande do Sul. À nossa direita, na esquina da Rua Siqueira Campos, uma árvore inteira foi derrubada. Os ícones da cultura gaúcha estão submernos. Demétrio, o nosso guia, mergulha o remo no coração de Porto Alegre. A Praça da Alfândega está engolida pelo Guaíba, que alcança 1m70cm.
Seguimos. Não há mais os degraus próximos à Rua da Ladeira. Das barracas dos ambulantes só se vê o ferro do topo. Ingressamos na Uruguai. Nossa intenção é seguir até o Mercado Público. Antes, chegamos ao Paço Municipal, a sede da prefeitura da capital dos gaúchos. Basta esticar o braço para alcançar o topo das paradas de ônibus. A fonte Talavera está submersa.
Ingressamos no Largo Glênio Peres inundado, sob um silêncio sepulcral. Só o barulho de nosso remo rompe o abismo. Não há gente, não há, por óbvio, o burburinho dos porto-alegrenses. Ninguém se arrisca por aqui. Confundimos as folhagens à mostra dos vasos de plantas com aguapés. E, à medida, que nos aproximamos de uma das mais icônicas edificações de Porto Alegre, o nosso mercado, o cheiro de podre toma conta do ar: peixe estragado com outros tipo de alimentos. Sinto vontade de vomitar. Respiro fundo. Supero. Para onde olho, vejo cebolas, tomate e berinjelas boiando.
Seguimos. Cruzamos o largo, passamos pela frente do Chalé da Praça 15 e dobramos à esquerda na Estação Parobé.
Não há correnteza, mas o cuidado é grande devido aos objetos submersos. Um jovem, que pede para não ser identificado, conta que está cuidando das frutas e verduras das quitandas ao redor do largo. Olho distante e enxergo batatas e tomates. Ele diz que estão apodrecendo. Pergunto como ele sairá dali. Conta que construiu uma estrutura em cima dos tetos da estação para permanecer ali.
Entramos na Júlio de Castilhos, dobramos na frente da sede do Palácio do Comércio, onde fica a Federasul. Ingressamos na Avenida Mauá. Foi daqui que o Guaíba começou a engolir Porto Alegre. Remamos em direção ao Gasômetro. Passamos pela Estação do Trensurb, submersa. Bem ali, onde há um mural em homenagem à Revolução Farroupilha, o fronte do Mercado Público de Porto Alegre, submerso, emociona. A água de cor marrom do Guaíba toma o cenário. Toco o muro do Trensurb, calculo a olho nu se a barreira da Mauá seria suficiente para deter o nosso Guaíba. Há trens parados, portas arrombadas em estabelecimentos e ratos por entre o que seriam pegadouros no caminho da estação de ônibus.
A essa altura, o muro da Mauá já é possível de ser tocado. E uma imagem contrastante é aquela da barreira de concreto pintada com as painéis comemorativos da cidade: "Porto Alegre, 252 anos". Estamos cansados. Já remamos por mais de uma hora. Estico o olhar por sobre o muro. A essa altura, o concreto está a menos de um metro do nível. Ingressamos na Rua Araújo Ribeiro. O som dos helicópertos toma conta do ar, rompe o silêncio. O antigo Hotel Majestic, a Casa de Cultura Mario Quintana, majestosa, por óbvio, toma conta do olhar.
Seguimos remando. Um senhor à nossa esquerda, na Sete de Setembro, é segurança de um prédio no quarto andar. Ele afirma que consegue sair, se quiser. Mas por enquanto, só observa. Adentramos na Travessa dos Cataventos, nas entranhas da Casa de Cultura submersa. O céu azul desta tarde irrompe por entre as edificações cor de rosa. Um dos principais cartões postais da Capital está tomado pela água. Olho para a direita e para a esquerda e o marrom do Guaíba se insurge. Pelo vidro, consigo ver um bar cujos proprietários colocaram os freezers em cima do balcão de atendimento. Garrafas de Gin, Sangalo, Chivas Regal e Johnnie Walker estão na prateleira.
O silêncio segue.
Ao alcançarmos a Rua da Praia novamente, a Livraria Taverna está com a porta entreaberta. Os livros estão acima do nível da água. É lá que encontro Ederson Lopes, um dos sócios proprietários do estabelecimento. Ele diz que conseguiram salvar os livros, mas a umidade preocupa.
Seguimos. Alguns metros à frente, encontramos um homem que afirma que duas mulheres com crianças estão à espera de socorro em um prédio:
— Estão na janela lá.
Avançamos até elas, número 766 na Andradas. Na sacada, dizem que não querem sair:
— Não precisa.
Se precisarem, pedirão socorro, dizem.
Pergunto se têm água:
— Água sim, luz, não.
Do outro lado da rua, à medida que voltamos ao ponto inicial, na esquina da Rua da Praia com a Caldas Júnior, encontramos Jorge Faut. Ele conta que mora ali e está tentando convencer a mãe a deixar o prédio.
— Ontem estava sete centímetros. Vou levar ela pra Zona Sul.
Estamos em dois botes. Apertando, conseguimos ajudar. André e eu ingressamos na recepção. Está tudo às escuras. O síndico alerta para não irmos pela esquerda, porque há um bueiro ali. Seguimos, pela direita. É ali que encontramos Dorcélia. Nos conhecemos apenas pelo faixo de luz. Ela usa máscara para proteção. Diz que não gostaria de sair. Vai contra à vontade. Demétrio, que concorda em fazer o resgate, se junta a nós. E ajuda Dorcélia.
Antes de ser levada por Demétrio, nosso navegador, ela acaricia, em meio à escuridão do lobby de seu prédio, folhagens do que era antigamente o seu hall. Segura até ela cair. Fala na espada de São Jorge. O filho, quase como uma atitude de anestesia emocional, diz:
— Depois tu leva, mãe.
Tudo isso iluminado apenas por uma lanterna.
Dorcélia acena em direção a um ponto mais alto da cidade. Deixou para trás seus cães. Não queria sair. Não há opção.
O tour de terror pelo centro da capital gaúcha termina como começou. Com cheiro de podre, ratos e silêncio. Um silêncio pós-apolítico.