A esquina da Avenida Ipiranga com a Erico Verissimo é meu endereço profissional há quase 32 anos. Só não posso dizer que metade da minha vida passei cruzando o Arroio Dilúvio para trabalhar em Zero Hora e Rádio Gaúcha porque desse tempo é preciso descontar os anos da pandemia e o pedaço de 2023 que trabalhei de casa por causa do tratamento médico. Em nenhum dos endereços residenciais que tive em Porto Alegre passei tanto tempo quanto neste que hoje vive uma situação inédita. Como recomenda o manual de segurança, muitas vezes participamos de simulações sobre como desocupar o prédio de forma ordenada em caso de incêndio, o que felizmente nunca ocorreu. Hoje, tivemos de sair no meio da tarde porque, com o desligamento das bombas de drenagem, a água avançava pelas ruas do Menino Deus. Sem correria, desconectei o computador, pus os equipamentos na mochila e desci as escadas rumo ao estacionamento sem saber quando voltaremos.
Já instalada em casa, diante do computador, vi cenas inimagináveis nestes 32 anos de convivência com a esquina de onde apresento o Gaúcha Atualidade e escrevo uma coluna que em dezembro completará a maioridade plena: 21 anos.
Os vídeos mostravam a água avançando pela Erico, com o sol a pleno. Já vi esse trecho alagar muitas vezes, mas sempre depois de um temporal. Já vivemos momentos de pavor, na tormenta de 2016, que arrancou metade das árvores do Marinha do Brasil. Mas nunca vi a Múcio Teixeira virar rio e a água se espalhar pelas ruas do Menino Deus como num filme de animação.
Tudo o que estamos vivendo nestes 10 dias que abalaram o Rio Grande do Sul é inédito para quem nasceu depois de 1941. Na sexta-feira (3) assisti à chegada da água do Guaíba ao Centro Histórico. Pela tela do computador vi centenas, talvez milhares, de vídeos e fotos que mostram o alagamento da Capital de todos os ângulos, os salvamentos, a destruição de cada cidade onde as câmeras conseguiram chegar, o horror em Canoas, São Leopoldo, Eldorado do Sul e Guaíba, aqui ao nosso lado.
De todas as imagens que desfilaram na minha tela nas últimas horas, nenhuma me impacta mais do que a da procissão de carros fugindo do Menino Deus e da Cidade Baixa pela Avenida Ipiranga e das pessoas na parada da Azenha. É cena de filmes de catástrofe ou de documentários de fuga em massa. De uma guerra, de um furacão que se avizinha ou dos incêndios que volta e meia atingem a Califórnia ou algum país da Europa. E tem quem não acredite nos efeitos do aquecimento global.
Protegida porque desde 2000 moro numa das partes altas da cidade, ainda com luz mas administrando a escassez de água, vejo os juízes das redes sociais “exigirem” do alto da sua falta de ocupação que aponte culpados pela tragédia que assola o Rio Grande do Sul. Querem que eu diga que o responsável é o prefeito Sebastião Melo ou o governador Eduardo Leite, como se não houvesse aquecimento global e um domo de calor estacionado sobre a região Sudeste, desencadeando a catástrofe climática que se abateu sobre nós.
Os sabichões querem que eu culpe os produtores de soja, os deputados que alteraram o Código Ambiental ou que autorizaram a construção de barragens em áreas de preservação permanente (norma que nem começou a vigorar), as autoridades que “nada fizeram diante das previsões catastróficas do Inmet e da MetSul”.
Ora, senhores e senhoras. É claro que temos muito a fazer em matéria de prevenção aos desastres climáticos, de proteção às nascentes, de combate ao desmatamento, de recolocação das pessoas que vivem em áreas de risco, de tratamento adequado do lixo (inclusive aí na sua casa), mas imaginar que com esse dilúvio haveria como colocar todas as pessoas afetadas em local seguro é ignorância ou má fé. Para dizer o mínimo.